segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

À Luz de um Bolero

- Vô, como é ser casado? Você e a vó são felizes?
- Ah garoto, as pessoas agem por motivos diferentes. Alguns se casam por costume, outros por interesse, amor ou ainda por medo de ficarem sós. Na minha época era muito diferente de como as coisas são hoje... Eu e sua avó já nos conhecíamos, mas naquela noite ao som daquele bolero, ela estava simplesmente deslumbrante. No dia seguinte a levei ao teatro. Ficou ao meu lado durante todas as dificuldades e eu a suportava com respeito e carinho. Sempre a amei de mais. Criamos nossos filhos. Mas também existem momentos quando seus sonhos de aventuras vão escoando pelo ralo, crescem as responsabilidades e você não consegue nem ao menos ter um minuto tranqüilo como gostaria.
- Mas então, é uma coisa boa ou ruim ser casado?
- Não quer dizer que é bom ou ruim, é uma convenção. Tem certas coisas nessa vida, meu filho, que não precisam ser ditas, elas falam por si próprias. O companheirismo, a amizade o carinho é algo que se der certo é maravilhoso. Mas mesmo assim sempre tenho a impressão de que é preciso escolher entre o indivíduo e o casal, e por isso renunciar. Todos nós temos dúvidas (ao fundo, o pequeno rádio de fita tocava Quizás, quizás, quizás). E independentemente da sua escolha de ouvi-los ou não, nessa vida sempre vão tocar diferentes boleros pela noite.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Aos que realmente fazem a diferença

Obrigado.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O Sabor da Morte

Conversaram sobre a vida e seus amores, regados ao ceticismo de um e ao idealismo da outra. Quando os pratos chegaram, ele lhe perguntou imediatamente:
- Você não come mais carne? É vegetariana há muito tempo?
- Uns seis anos, e já me acostumei. Considero errado criar animais e depois matá-los apenas pelo bel capricho do paladar humano.
- Nossa que interessante seu ponto de vista! Acho que eu jamais me acostumaria. Não quero me acostumar a nada. Só que seu ponto é realmente intrigante, e até lhe dou razão. Mas os brócolis também já foram vivos um dia...
- Sim, mas não tem um sistema nervoso desenvolvido como o de um bovino (risos). E você sabe como eles fazem o abate ou como funciona uma granja?
- Ah, não quero saber! O que me interessa realmente é que eu adoro sentir o gosto da morte, e isso ninguém pode tirar de mim (risos). Além do mais, todos nós estamos aqui pra morrer mais dia menos dia mesmo.
Sabiam que, como a história os havia demonstrado, uma grande mentira repetida muitas vezes pode ser considerada como uma verdade. Depois de gargalhadas e breves instantes de silêncio, ao esperarem pelo café expresso ela lhe disse com um sorriso indecifrável no rosto:
- Seja como for nós temos que nos alimentar, mas podemos optar se o que comemos é doce ou amargo.
Caíram mais uma vez na risada. Ela tomou o café com bastante açúcar e ele bebeu o seu puro.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Luz no Fim do Túnel

Respirei fundo, segurei o ar, estabilizei as mãos, mirei meticulosamente e o alvo havia sucumbido. Matei-o. Matei não apenas o que havia sido e não mais seria, mas também o que para mim significava. Ao contrário de Zaratustra, matei a piedade em mim. Sabendo que não teria mais nenhuma oportunidade de redenção real como Fausto e Raskólnikov o tiveram. Assim o havia escolhido, e este era indubitavelmente meu único consolo; pois queria a soma de todas as possíveis experiências que um Homem pode obter. Como conseqüência, me suicidara conscientemente e seria apenas mais um vago homem vácuo nesse mundo, pauperizado de espírito, sucumbira ao espiral do inconcebível universo. Como a gota de chuva que cai sobre um lago eu também dissipei. O inexorável à vida é mesmo não desistir da luta, evoluindo em ciclos sem esquecer-se de quem e do que realmente amamos. Ao menos foi isso o que disse com voz amena aquela luz que me mandou de volta.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Olhar de Criança

Passou os dedos vagarosamente sobre aquele velho móvel de madeira que estava abandonado e sem uso. Imaginou que havia sido ele um dia uma árvore, se questionou o quanto havia chovido para que esta árvore crescesse e se ela havia chorado quando foi cortada. Sentira um discreto pulsar de vida naquele pequeno móvel. Lembrou que aquele móvel pertencera a sua mãe. Carregou-o com cuidado para fora e começou a lixar sua superfície. Lixava cada vez com mais intensidade para remover a crosta das diversas camadas de tinta e ia descobrindo uma tonalidade sob a outra. À medida que lixava se esquecia do mundo e das diversas coisas que se comprometera a fazer. Horas depois, percebeu que a superfície já não era mais tão áspera. Passou a lixar com mais delicadeza, sentindo cada movimento, se atentando aos ricos entalhes da peça, sem desgastar o material em demasia até que removesse os últimos resquícios de tinta. Assoprou forte repetidas vezes para que pudesse enxergar com mais clareza por sob a poeira. A cortina já caíra por sobre o espetáculo do céu sem que ao menos notasse a revoada. Passou a mão espalmada e ferida sobre a superfície da peça e sentiu como se houvesse encontrado finalmente a vida daquela árvore que ali era retida. Continha em si a alegria que apenas olhos de criança podem ver, era como se enxergasse algo pela primeira vez. Agora sim poderia entender os Hidden Secrets de Pollock. Protegeu a peça do sereno e decidiu que amanhã acordaria cedo para comprar verniz e passar a primeira demão.
Dormira em paz, mas ansioso pelo amanhecer. Logo cedo já dava as primeiras pinceladas. Terminou a primeira demão rapidamente e deixou-o ao Sol. Ao final da tarde já concluía a segunda demão com tal concentração e perfeccionismo que se desconcentrou apenas com o bater de asas de um bem-te-vi, que deixava o tremulante galho da palmeira. Colocou a peça em lugar coberto e não se preocupou com a umidade, pois havia sido um dia quente e seco. Já sabia até o lugar da casa em que colocaria o móvel em destaque. Foi se deitar pensando no verniz marítimo que protegeria seu móvel por muito tempo e sem a ansiedade inicial de vê-lo pronto. Quando acordou foi imediatamente olhar o resultado após seu café da manhã e antes de sair para o trabalho. De imediato constatou que não havia ficado como o esperado, com algumas falhas no acabamento. Ficou descontente por alguns segundos, mas sorriu após fechar os olhos e recriar uma cena de sua mãe lhe dizendo com ternura quando era criança: meu filho, às vezes nós não podemos ter tudo o que queremos; é sempre melhor ter um pássaro na mão do que dois voando.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Ela

Clama dentro em mim o amargor do amor contrariado.
Não entendo porque,
Não posso tê-la comigo, se vejo
Em teus olhos, o desejo recíproco.

Porque foges de mim?
Se teus olhos furtivos,
Também me seguem, assim como
Os meus te desejam, onde quer que estejas.

Queria apenas poder sentir
Como na plenitude de um simples toque seu
O sabor de teus lábios, como sei
Que realmente gostaria que o fizesse ousadamente.

Na única vez que a viste,
Descomposta de tua armadura,
Me olhaste de canto,
E fechaste a porta.

O que temias, se a alvorada pensa em ti
Um beijo? Uma última dança?
Dê-me sua mão, e um breve momento
Fique comigo, até o sol raiar novamente.

Pois o sono não me alivia,
Daquele olhar selvagem e doce
Tão capaz de me emergir em poesia.
Queria apenas poder sentir intensamente, sem o mundo, um reeditado momento.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Insanidade Costumeira

As lágrimas do céu beijavam o asfalto na cidade da garoa. Tantas visões de mundo distintas... Ali, dentro de uma janela, vozes ecoavam e se perdiam no espaço. Que loucura esse mundo das palavras, haviam crescido juntos e nunca precisaram falar muito pra dizer o que queriam um ao outro. O resto era o resto, e sempre assunto pra boas conversas:
- Cara, esse é o tipo de viagem que nos daria muitas outras histórias pra conversarmos no futuro.
- Ou pra rir, se o futuro for triste...
- Não importa, vamos curtir a festa, a música, as pessoas, a ilha, os bonequinhos moai, o eclipse. Imagine, vai ser irado!
- Nossa seria mesmo, com aqueles bonequinhos firmeza olhando pra nós! (Ao morder desastradamente seu pedaço de pizza deixou cair todas as rodelas de cebola no chão.)
- Ah meu, olha só isso! Minhas cebolinhas saíram voando!
- Voando é? Suas cebolas desconhecem a lei da gravidade?
- Vai dizer que nunca aconteceu com você? De estar conversando assim de boa com sua mãe, e, de repente, uma cebola voadora bate no vidro da janela! (risos)
- Seria bem engraçado, uma pobre cebola com asas bater no pára-brisa do meu carro! (risos)
- Bem podia né? Independentemente dos meios, a gente sempre termina por se acostumar a tudo mesmo...

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Faroeste Caboclo

O cenário era árido e abafado, as solas de suas botam tocavam o solo seco e pedregoso penitentemente ao atravessar aquele vazio esquecido. Ao se aproximar da porta e tirar o chapéu feito de material grosseiro pode-se ver seu rosto envelhecido pelo sol e pelo trabalho árduo. Pendurou sua espingarda nas costas com uma tira transversal, bateu uma bota contra a outra a fim de sacudir a poeira e entrou humildemente. Fez uma genuflexão e se encaminhou rumo ao confessionário. Quando chegou a sua vez de ser atendido disse:
- Bom dia seu padre, eu pequei. Conheci uma mulher e...
- De novo meu filho! Não posso continuar te absolvendo assim nem com mil ave-marias.
- Mas antes da bronca espere, pois o senhor não me deixou nem ao menos contar como ela era!
- Ah! Eu não quero saber como era essa mulher; artifício do cão!
- Pois eu não entendo seu padre, nos mandamentos não se diz que é pecado cobiçar a mulher do próximo? Então, eu acho que ela não era de ninguém não.
- Isso continua a ser pecado porque você é um homem casado! Seus atos são atentados contra o santíssimo sacramento, e dessa forma eles são uma afronta a vontade de nosso Senhor.
- Ai, eu continuo sem entender nada então! Nem assinar papel nenhum eu assinei...
- Dai-me forças, oh santíssimo que morreu na cruz! O que você tem que entender é que se continuar com essa postura vai acabar ardendo no inferno!
- Cruz credo! Vira essa boca pra lá! Ê padinho, o senhor sabe não é, o Tinhoso só tenta quem está perto de Deus.
- E você meu filho, por misericórdia, continua caindo em tentação do coisa ruim!
- Como diz o povo por aí, é só misturando mesmo pra saber o que vai dar... Bom, tenho que voltar pra fazenda. Agradecido seu padre, até a próxima.
O padre suspirou desiludido:
- Dê-me forças Senhor!

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Fora de Controle

Do lado de fora o movimento selvagem, mas não a vida, já se extinguia. O prédio encarava com aspereza a avenida e tudo o que passava por ela. Dentro dele, uma verdade em parte distinta dos mundos exteriores, algo que existia sob uma concepção mais funcionava sobre diferentes óticas. Um homem encorpado e taciturno com um distintivo preso a calça e uma fisionomia transtornada e exaurida entra novamente como um animal descontrolado dento da sala e parte para cima de outro homem de macacão laranja cujas mãos estavam algemadas. Ele é agredido cruelmente sem que os demais indivíduos presentes reajam. Finalmente o homem com distintivo aparente é contido por outros dois e grita inconformado com toda ira que pode emanar de seu ser:
- Porque, porque seu maldito vagabundo, porque resolveu se meter justo com minha irmã?
O homem atirado ao chão não esboçou nenhuma outra reação que gemer e tossir sangue. No momento em que o outro lhe agrediu novamente, lhe agarrou pelo pescoço e olhou no fundo de seus olhos este desviou o olhar, suspirou apaticamente e murmurou em baixo tom:
- Eu não queria machucá-la. A necessidade, a necessidade... Eu estava desesperado.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Marujo

Mãos ásperas conduzem o timão e içam velas
Rumo ao desconhecido, imensidão
Da surdina onde repousam as palavras: respostas
Enquanto rumo cego segue levado pelo mar

Sextante e bússola não dizem o que estrelas tem por me falar
Quisera eu saber o rumo
Do almirante louco que me conduz
Corre correnteza, como se fosse me levar

O canto da sereia atrai rumo ao imenso belo azul
De lágrimas de Yemanjá
Rezo porque navego, e navego porque espero
O vento que sopre rumo ao novo ancoradouro

Timoneiro, na esperança de um novo dia é um árduo sonhador
Sonha com a alvorada, além do velho do Restelo
Deixa pra trás o que não vale, o que resta é tão pouco
Maravilhoso vagabundo segue no caminho perdido

Águas passadas não movem moinho
E o sol nasce sorrindo
Acima da linha que divide o azul, sobre o mar convidativo
Já havia zarpado quando o sol veio lhe trazer, bom dia!

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Ainda somos o que perdemos

A noite já havia caído há muito quando o motor ruge e é dada a largada. Saíam sem rumo, aleatoriamente, passageiros, andando de lado a lado como se fugissem de algo. Cabelos ao vento, dentes rangendo, percepção e sentimentos a flor da pele; sentir a noite, sentir o mundo. Porque estamos aqui? E que diabos estamos realmente fazendo aqui? O futuro realmente parece cada vez mais ser algo resultante de nossas escolhas, e por isso, de certa forma pré-determinado. Talvez por isso tenhamos secretamente tanto medo dele, pois este não é o desconhecido, mas sim o caminho escolhido por livre e espontânea arbitragem (por mais contraditório que isso possa parecer).
De repente escuto:
- Lucas, feche o vidro um pouco.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Rumo ao Progresso


Certo dia, mesmo tendo acreditado de imediato em vista a credibilidade da afirmação, fiquei estupefato com o comentário de minha mãe. Ela me disse que cada vez mais prescreve receitas de antidepressivos e calmantes nos postos de saúde em que trabalha, e que não obstante, tem que convencer algumas pessoas de que não necessitam do uso de tais drogas. Creio que essa afirmação talvez não seja nova a muitos, porém isso não contradiz o fato de que considerei ser isso algo chocante a qualquer pessoa com massa crítica suficiente para encarar fatos da realidade. Quanto a mim, admito não ter capacidade ou interesse em desmembrar tais fatos a fim de analisar de forma lúcida nosso redemoinho. Sendo assim, lembrei-me de alguns autores cujas obras eu obtive acesso pela bibliografia da faculdade, e pensei sobre o medo do açoite da fome, na anomia social, no mal-estar da civilização, na mais-valia no processo de acumulação e no imperialismo. Acredito ter certa beleza, genialidade e boa intenção nessas teorias e em tantas outras que buscam nos guiar em eternos tempos de escuridão, mas mesmo assim, por mais que doa fazer tal comentário, não as vejo como sendo algo realmente determinante a uma ruptura na lógica do nosso processo de organização. Talvez o tempo comprove alegremente minha estupidez e o acúmulo de inúmeras teorias inovadoras sejam capazes não de apenas alertar a percepção de algumas pessoas, mas promover uma mudança significativa de forma horizontal. Acredito ser o estímulo, a inspiração e a semeadura natural da esperança algo realmente significativo. Do que valeria tantas teorias se não pudéssemos sonhar ao sermos atingidos pela capacidade humana de alcançar profundamente os sentimentos alheios? Mesmo levando em conta a relativização do significado da palavra arte segundo critérios de interpretação pessoal, o ser humano não é capaz de se expressar e se fazer ouvir de forma mais sublime que através de diferentes produções artísticas. Com ela podemos criar mundos à parte, entreter, estimular ou desiludir, iludir ou informar, maquiar ou realçar, fazer amar ou odiar. Através do tempo, me atenho a nomes de expressão cujas obras eu tenho anorme admiração e que considero relevantes à argumentação: Wassily Kandinsky rompeu com as formas em óleo sobre tela, James Joyce corrompeu a linguagem escrita e Richard Wagner subverteu a música erudita. O fato de analisar brevemente o percurso humano e constatar que produzimos aparentemente menos indivíduos originais com produções de grande envergadura também parece ao meu questionamento superficial como uma decorrência da outorga sutil que fere a sensibilidade, sobrepuja os sentimentos e impõem a racionalidade de uma ordem a qual somos subordinados involuntariamente e de maneira irrecorrível. Não somos todos de fato plenamente iguais fraternos ou livres, assim como esses ideais também não são frutos do mero acaso. Vivemos numa espiral regida por valores altamente questionáveis e facilmente aceitos; passamos pela vida com pressa como uma ventania de outono que varre as últimas folhas sem ter visto o desabrochar da primavera. Por isso há uma necessidade de acreditarmos em algo que nos satisfaça mesmo que isto extrapole a capacidade de nossos sentidos e ofenda nossa vã ciência. A cada passo que damos devemos ter a consciência de que o caminho pode ser alterado, pois o pior de tudo é acreditar cegamente que o destino tomado rumo ao tão aclamado progresso não é apenas a panacéia, mas a única opção. Que se abra a caixa de Pandora.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Azaléias

Ela se equilibrava como podia em seu salto alto ao descer uma calçada íngreme e irregular. Chovia forte, e ele, mal humorado e encharcado a apressava impondo seu ritmo cotidiano acelerado. Afinal, estava cansado e queria chegar logo em casa. Ela sorri apaixonadamente quando ele a retém em seus braços logo após ter escorregado. O sorriso dissipou tudo o que havia de ruim em volta dele, e fez com que se aproximasse de um belo arbusto de azaléias. Usurpou da natureza a flor mais vistosa, e prendeu-a carinhosamente entre aqueles belos cabelos compridos. Olhou-a, fitou seus olhos demoradamente e sorriu de volta.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Olhos Calados

Encontrava-se naquele típico momento em que seres humanos, orgulhosamente tão sábios e realmente tão ignorantes, se questionam sobre sua existência. Questionava-se sobre os motivos que haviam lhe prendido até então. Amor, liberdade, realizações pessoais... Não sabia ao certo nem ao menos os seus verdadeiros significados. Queria contemplar o universo, ver além do horizonte, mas não conhecia nem o seu mundo. Acreditou ser tudo uma mera e complexa fantasia da percepção humana. Sim, era tudo realmente possível de ser elaborado pelo imaginário humano. Mas então o que era o tudo e o que seria possível? Expirou sofregamente; poeira. O que nos prende? Mera sobrevivência de um animal que pensa saber mais que os outros, e portanto, se denomina modestamente sapiens? Será que existiria mesmo uma resposta a todas aquelas almas mutiladas e aqueles corações desesperançosos? Naquela espiral, éden e purgatório, onde muitos esperam a panacéia e tantos outros fingem ser tudo normal o peão não pára de rodar. Era tudo frenético, frenesi. Queria que um grito de descontentamento ecoasse pelo vazio e pudesse apenas fazer as engrenagens pararem. Queria poder sentir tudo verdadeiramente, deleitar-se com o inimaginável ilimite do inesperado e assim banir a espiral maçante do corriqueiro e ordinário previsível. Queria ir além da dor, das ilusões, queria conhecer a máquina do amor e a engenharia do mal, queria o absoluto. Seus olhos foram cerrando-se calmamente, desta vez não fizera mais anoitecer. Uma solitária lágrima correu-lhe pelo rosto, quente, como erupção da agonia pela realidade de sofrimento calado de todas as almas bem intencionadas desse mundo; ao qual se desprendia. Inspirou prazerosamente, o vento varreu as últimas folhas do outono, imergiu no oceano de luz e descansou em paz.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

É tudo uma simples questão de poder

O pequeno e ingênuo carneirinho andava cabisbaixo e retraído desde que o sol havia raiado e pouco pastou durante o dia. Ciente de tal acontecimento e com certa preocupação, seu pai desgarrou um pouco dos outros companheiros e foi em sua direção querendo ter com ele uma conversa:

- O que se passa meu filho? Pensando na morte da bezerra?

- É, mais o menos isso pai, só pensando um pouco. Nada de mais.

- Converse comigo filho, posso tentar te ajudar. Sabe, às vezes posso até ter passado por isso que tanto parece te afligir.

O pai estava crente que se tratava de um coração partido. Já o filho, que acreditava que em nada podia lhe ajudar a atenção paterna foi vencido pelos olhos de ternura que o questionavam e disse melancolicamente:

- Pai, esse mundo é um lugar muito perigoso, onde acontecem coisas horríveis. Eu não gosto nem um pouco daqui!

Depois de desviar o olhar por breves segundos o pai respirou profundamente e, com sua voz grave, de uma maneira surpreendentemente doce e delicada ponderou de forma que suas palavras soaram como música aos ouvidos do carneirinho:

- Meu querido, eu posso afirmar-te que não sei nada sobre esta vida, mas o que te digo agora é o que sinto. Há realmente coisas terríveis acontecendo a todo o momento, capazes de nos fazer chorar, algumas em que podemos fazer a diferença com atos simples, outras, nem tanto. Coisas capazes de chocar até o mais cético dos seres vivos de boa vontade. Mas eu acredito que o segredo é não se deixar abater facilmente, manter vivos os motivos para sorrir. Porque, meu filho, existe pouca coisa linda nesse mundo, mas tão lindas que são capazes de fazer uma vida inteira valer a pena.

O carneirinho nunca havia escutado tão abertamente seu pai como fizera agora, assim como não imaginara que alguém que nunca houvesse desgarrado do rebanho pudesse ter tanto para contar. Vendo que o ar de contentamento do filho havia de certa forma voltado o pai abaixou a cabeça e deixou-o só com seu emaranhado de pensamentos.

Saltitando de contentamento o carneirinho se dirigiu a uma das encostas da montanha por onde corria um pequeno veio d’água. Seguiu em um trote alegre e foi cumprimentando as flores e os passarinhos pelo caminho. Chegando a seu destino, abaixou a cabeça de forma a beber um pouco da água que se acumulava em uma poça ao lado do veio que corria montanha abaixo.
Após alguns minutos de tranqüilidade o carneirinho escutou:

- Ei, o que fazes aí?

Procurando de onde ecoava a voz o carneirinho avistou logo abaixo de si um lobo aparentemente velho e meio despelado, e lhe respondeu:

- Apenas me refrescando um pouco senhor, mas já vou indo. Uma boa tarde, senhor!

- Boa tarde, e o que há de bom se estás aí a sujar a água que me corre ladeira abaixo.

- Ah, hoje meu pai me ensinou que existem muitas coisas bonitas na vida! E me desculpe senhor, mas não estou sujando nada.

- Sei sim. Então se não fostes tu foi teu pai que sujaste minha preciosa água. E isso não é algo discutível.

O lobo subiu com enorme destreza e agilidade os poucos metros que o separavam e atacou com ferocidade aquele que acabara de se tornar seu jantar.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Trenzinho Caipira

Seus passos pareceriam que rumavam com destino certo, determinado. Mas à época não sabia bem o significado da palavra ‘sacrifício’. Era imaturo, por isso as dúvidas brotavam a cerca de abandonar o seio materno e encarar-se com o que nunca antes havia se deparado: a realidade, nua e crua. Uma força parecia ser mais forte que tudo, indomável era esse sentimento conhecido por nós como curiosidade. Quando pequeno invejava os garotos pobres que brigavam com tanta valentia e sempre tinham resposta para tudo. Era a sua hora de ter coragem, e agiu naturalmente, mas nunca imaginou o alcance das conseqüências profundas de ter subido nesse trem. Posteriormente iria comparar esses passos que lhe pareciam tão naturais e salvadores como uma peregrinação infindável, em que a sola macia de seus pés tocava e encarava de forma penitente as pedras quentes e irregulares que calçavam o caminho sinuoso. Embarcou. Conforme o tempo passava, o rastro de fumaça da locomotiva se espalhava sobre a linha do horizonte e dividia o céu da terra. Se densa inicialmente, a fumaça se dissipava melancolicamente a cima dos trechos já trilhados. À frente da locomotiva, o desconhecido, que lhe propiciava o efeito de uma injeção de adrenalina, fato tão típico em jovens irresponsavelmente curiosos sedentos por aventuras. Para ele, carregava em sua bagagem a verdade. Viver era preciso; enxergar inconscientemente também o era. Em sua visão pela janela lateral do trem não podia debruçar seus olhos nem à frente nem atrás do caminho, mas a lembrança que se sobrepunha à imagem presente na janela era a de seus pais, de sua família. Precisava aprender o significado de sacrifício por si só. Lembrava-se deles, sentia o aconchego do amor. Mais angustiante que responder a sua mãe que a data de retorno não fora e provavelmente não seria marcada, era não ter nada a dizer a seu pai, que lhe olhava calado sem nada falar e com muito a dizer. Era como a tacada da bola oito, definitiva, infinito... Almas sempre inacabadas. Acreditava que a encruzilhada crucial, aquela em que se decide por sujar ou não as mãos, como lady MacBeth o havia feito, estava longe. Mas mal sabia que não haveria mais tanta calma pra pensar nem muito tempo pra sonhar d’ali em diante.


Continua...

segunda-feira, 11 de maio de 2009

A Resposta que Eu Gostaria de Ter Dado

Em um aglomerado urbano qualquer, sentados em uma pequena mesa de bar posta numa calçada que margeava uma grande avenida, dois amigos conversavam após o farto jantar. A trajetória de ambos juntos poderia provar que eram realmente grandes amigos, e como tal, não esperavam apenas pelo seu turno de falar. Um olhou interrogativamente para o outro após um breve silêncio, e com um sorriso discreto no rosto perguntou:

- Você bebe mais que o habitual hoje, tudo bem?

Após mais um gole de cerveja o outro respondeu calmamente:

- Bebo porque é líquido, se fosse sólido comê-lo-ia! (os dois riram) Ah, só não agüento mais engolir a seco toda essa loucura e fingir que tudo isso é normal...

O amigo olhou apaixonadamente para o cigarro que queimava entre seus dedos, deu um trago que parecia ser capaz de curar toda sua dor, e disse como quem também passava por isso:

- Relaxa cara, você está sendo mole demais, agente agüenta isso. Afinal, todo mundo agüenta. Nossas aulas serviram ao menos pra alguma coisa; nos mostrar que fomos individualizados, racionalizados e capitalizados.

- Muito bom, e ainda por cima o sinônimo de pessoa é indivíduo... Aprendemos a olhar criticamente o mundo, para depois nos conformarmos com isso. Nesse caso o Governo devia lançar o Bolsa Psicólogo!

O ceticismo apático de seres ainda tão jovens somado à alegria de terem suas agonias parcialmente compreendidas fez com que rissem mais uma vez. Logo após mais um trago o amigo perguntou com a candura habitual:

- A fumaça não te incomoda?

- Não mais. Fume sossegado.

- Andei lendo umas coisas esses dias, se quiser te indico depois. Realmente meu amigo, o sistema todo já foi estabelecido, não podemos mais fazer nada...

Com o álcool influenciando a maioria das suas reações, o outro rebateu prontamente:

- Puta merda! Realmente o que fazemos desse mundo é um lixo! Olha só pra esse maluco aí (apontou um catador de lixo que cruzava lentamente a avenida com sua carriola de lixo). Onde fica a poesia nesse sistema?

Ironicamente o amigo pondera:

- Ah! Vai dizer que as comodidades que temos e a facilidade de encontrar mão-de-obra barata não te agradam? E você abriria mão de um espaço de sua casa para assentar sem-tetos? É assim mesmo, mais cedo ou mais tarde todos acabam por estabelecer seus preços.

Após certo tempo olhando o vazio o outro diz pausadamente:

- Só sei que eu vejo muita coisa bonita nesse mundo, coisas que fazem uma vida inteira valer à pena. Meu amigo, nós não podemos desistir assim das pessoas. Senão sobra pouca coisa da vida. Tudo que é belo e grande nesse mundo não nasceu de um discurso meramente racional. A música está por todos os lados, só cabe a nós ouvi-la.

- Não sei, mas acho que se o amor pode realmente mudar o vazio de uma vida, talvez possa salvar o mundo!

Em seguida, ambos com um sorriso moribundo no rosto fizeram o último brinde da noite, terminaram a cerveja e foram para suas respectivas casas dormirem embriagados.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Quanto Vale um Sorriso?

O local era um barraco de terra batida com um cômodo na periferia da cidade, mobilhado com um colchão encardido estendido no chão, alguns poucos objetos, roupas amontoados, um fogão e uma geladeira que se esfacelavam. Algumas crianças franzinas corriam fora do cômodo e uma delas se estirava no colchão quando entraram. Após uma dessas travessuras que crianças em busca de conhecer o mundo cometem, sua mãe o puxou pelo braço e disse: Filho, o problema não é esse. Uma vez minha avó me falou que podemos confiar nas pessoas, só não podemos confiar no diabo dentro delas. Ele perguntou a sua mãe em seguida com os olhos faiscantes: Mas, mamãe como podemos afastar o diabo então? Com toda sua fé respondeu-lhe sem hesitar: Reze meu filho, reze! Pois o destino a Deus pertence. Depois deste dia, nunca mais veria sua mãe.

Era véspera de natal e um homem bem aprumado e bem intencionado entra no pavilhão infantil de um grande hospital. Observa as crianças interagindo, se aproxima do enfermeiro de plantão e pergunta quem era a criança que de tão desfigurada não pode distinguir nem o sexo, sentada em um canto isolada das outras. O enfermeiro se voltou para ele e de costas para as crianças: Esse garoto foi abusado pelo pai e contraiu o vírus HIV. A vizinha nos contou que o menino viu seu pai depois de mais um porre esfaquear a mãe até seu último suspiro, atear fogo na casa e se matar em seguida. Foi assim que ele se queimou, os vizinhos conseguiram salvá-lo, e aqui está. Com um nó na garganta, aquele que era um grande burocrata não pestanejou e a abordou o pequeno enfermo. Tentou se comunicar, contou piadas, pegou alguns brinquedos próximos que estavam no chão, gesticulou, falou da sua vida, disse adorar crianças e ter três filhos; em suma, o bufão tentou de tudo sem ter reação alguma.

Quando saiu do transe de seu esforço por causa do cansaço notou que a noite estava em vias de abraçar o dia. Com suas esperanças arruinadas lastimou por ter perdido uma tarde livre com seus filhos e praguejou mentalmente contra sua estúpida inocência. Não podia salvar o mundo. Despediu-se secamente levantou em seguida. Sentiu que algo puxava seu jaleco de visitante. Era a pequena e disforme mão do garoto que o impedia de prosseguir, e ao voltar seu olhar para o rosto do menino escutou: Tio, o senhor pode não perceber, mas eu estou sorrindo!


Baseado em um fato real.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Dois meses depois do carnaval...

Erro de português *

Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português


*In Andrade, Oswald de. Poemas Menores

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Muito mais do que palavras

Sabiam cada um da sua maneira que esta situação podia até ser corriqueira, mas seu desfecho era mais que inusitado. Um abraço, enorme saudade. As palavras eram escassas, mas o diálogo era denso. Não se entendiam tão bem, porém o respeito e amor mútuo transcendiam todas as diferenças. Aprenderam muito com a convivência de tempos juntos, cresceram. No breve segundo em que os olhos se encontraram timidamente, o primeiro emanava candura e contentamento, o segundo não tinha palavras para dizer: muito, muitíssimo obrigado, meu pai!

segunda-feira, 30 de março de 2009

Possivelmente Explicável


Em uma segunda-feira, dois de Fevereiro deste mesmo ano, eu coloquei aqui uma postagem intitulada “Eu quero ver gol”. Nela descrevia o ápice de uma partida de futebol como algo inexplicável, de forma que a emoção de um esporte de massa não poderia ser transcrita por palavras. Enganei-me. E venho aqui tentar refutar meu próprio argumento com a seguinte fundamentação: Na segunda metade do século XVIII intelectuais de língua francesa se reuniram em Paris com o objetivo sublime de produzir uma enciclopédia. Porém, muito além de tal obra está a prerrogativa de sua criação; o fato de que Homens se atribuíram a capacidade de explicar tudo o que fosse existente no mundo. Desse modo, com a herança dessa ousada empreitada intelectual humana e de outras inúmeras obras subseqüentes fica-me a sensação de poder ao menos explicar meu equívoco. Tendo acesso a formação educacional de qualidade (como todos o deveriam ter) e a séculos de produção intelectual de nossa espécie, eu não consegui me conter ao enxergar óbvio. Não estou aqui, como muitos audaciosos o fazem, a tentar argumentar ou definir algo como o amor em apenas um verbete; tento apenas refletir sobre a importância social dos esportes popularmente difundidos. Para começar, assim como o brasileiro estereotipado, eu sou um amante do futebol. Este é capaz de me trazer alegria ou tristeza fugaz, como uma droga o faz, mas sem efeitos colaterais. É um assunto infinito para rodas de bate-papo, funciona como um “homogeneizador” natural na interação entre pessoas de níveis sociais e culturais completamente destoantes. Além do caráter magnífico de possibilitar uma redenção social impressionante, digna dos melhores contadores de histórias e dos melhores diretores de cinema. A primeira vista parece ser algo realmente inexplicável. Mas aqui vou eu! Primeiramente gostaria de deixar claro que não sou entendido em Psicologia, então peço que me desculpem a rudeza dos argumentos. Na minha visão, a necessidade de nos identificarmos com algo é puramente natural, e o fato de se relacionar com o que se tem afinidade é intrínseco ao ser humano. Assim o fazem aqueles que, como eu, seguindo o exemplo do meu país, se associam a um clube de futebol e/ou uma escola de samba. Objetivos pessoais e elementos cotidianos que nos possam fazer sorrir ou chorar são tão essenciais a vida como nosso arroz e feijão. E assim onde o futebol é tão massificado (e muitos já nascem até com o escudo marcado na alma) é natural associarmo-nos a estes clubes; assim como é natural vibrar, chorar e cobrar a vitória. Porque, assim como nessa mera associação com uma entidade esportiva, temos a infeliz necessidade de sentirmo-nos vitoriosos em algo.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Poesia de Ser Pessoa

A pobre alma desaprumada olhava fixamente para as imagens de santos em seu oratório composto de cores pastéis com velas coloridas ao redor. Suas mãos dispunham-se juntas uma da outra e os dedos entrelaçados seguravam desajeitadamente um terço próximo à sua boca. Orava fervorosamente como se assim o houvesse feito durante toda sua vida. Mas não era nem um pouco apegada a rezas ou crenças, queria apenas se desapegar da angústia e do desespero que a consumiam. Apegava-se ao gesto como última saída e repetia suas palavras desesperadamente esperando poder passar além do Bojador. Relutava para não se acostumar àquilo que não lhe aprazia. Clamava para que ao olharem de cima não permitissem que seus sonhos fossem esmagados e sua esperança dilacerada. Aliás, a pessoa a qual estava em jogo não era apenas quem a havia ensinado que o amor existe, mas aquele que havia lhe mostrado que o amor valia à pena se a alma não fosse pequena. Cada vez que se encontrava incapacitada de ajudá-lo, a impotência consumia ainda mais seus sentidos. Assim uma lágrima correu, e se afastou do oratório com um olhar melancólico e vago. Com seus olhos sem brilho perdidos na escuridão do ambiente levantou-se e se distanciou alguns passos do altar improvisado. Em seguida passou o olhar por cima de um prato de comida que havia deixado displicentemente na sala e que se encontrava infestado por formigas. De maneira impulsiva esmagou todas as que estavam ao seu alcance. A carnificina só se ateve quando o telefone tocou. Mesmo se em sã consciência soubesse que hospitais não fornecem notícias pelo telefone, sua ingenuidade fez do fato de terem-na chamado durante o breve cair da noite um motivo a mais de esperança. Não era mais inteira, e a lua já brilhava alta quando voltou para casa.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Quando as folhas caírem em uma nova estação

Com o resplandecer do sol durante mais uma manhã de um novo dia, uma árvore de um parque qualquer diz a outra muito maior que ela que se encontrava próxima:
- Bom dia, flor do dia! O que me conta de novo?

Esta lhe responde:
- Ora, tudo na mesma... Apenas tomando um banhozinho de sol. Por quê?

Voltando o olhar às pessoas que andavam no passeio logo abaixo a pequena árvore diz timidamente:
- Ah, por nada...

Tentando ser polida com sua colega de espécie, a grandalhona arriscou:
- E você, o que me conta?

Percebendo o esforço da companheira esta emendou:
- Nada de mais também, mas o dia está particularmente lindo. E aí, algum plano?

A árvore grande de copa larga e vistosa não pode mais se conter e gargalhou. Em seguida disse com particular candura:
- Minha querida, ainda é cedo, mal começastes a conhecer a vida. Certa vez uma árvore velha e sábia - que ficava onde hoje é aquela avenida logo ali - me disse que se quisermos fazer com que o criador ria de nós, temos apenas que lhe contar nossos planos.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Flores ao Fim do Caminho

Parecia que sempre lhe faltara algo para preencher a vida, e assim continuava andando. Era um dia quente, de sol forte, tão seco que parecia que há muito não chovia. A música tocando lhe conferia uma alegre sensação de carpe diem. Olhava por sobre o volante, o céu incrivelmente azul, e quando desceu seu olhar do azul até a linha do horizonte avistou um morro ao fundo que se destacava na paisagem. No trajeto, às margens da rodovia havia algumas carcaças de automóveis enferrujadas, o que conferia a paisagem o aspecto de um sepulcro a céu aberto. Não muito depois avistou um posto de gasolina com ar macabro que se encontrava completamente abandonado. Passou por alguns ônibus carcomidos pelo tempo que carregavam trabalhadores, pois, mesmo apesar do sol ainda reluzente o dia já se encaminhava para o fim da tarde. Grande parte da plantação que se estendia pelos campos além de seus olhos já havia sido ou estava sendo colhida. Na época da moagem o verde opaco dava lugar gradativamente às cinzas. O odor nauseabundo do melaço empesteava o ambiente, mas sem tirar por completo de um turista o charme rústico da paisagem. Serpenteando entre os montes havia um rio assoreado de aspecto indescritivelmente triste. Em uma encosta avistou pequenas cabanas dispostas assimetricamente juntas feitas de barro ou de folha de coqueiro, e a frente delas, tomou um susto: Um treminhão que saia de uma via secundária de terra batida e levantava muita poeira entrou bruscamente na rodovia em baixíssima velocidade e o obrigou a uma manobra arriscada.

O mundo girava como sempre o havia feito, e mesmo que não o sentíssemos em lugar nenhum, aqui a sensação era de que nada mudara há décadas, ou até séculos. Percebeu com certo estranhamento que havia urubus sobrevoando o vilarejo disposto nas encostas do morro. Se aproximando do pé do morro, o qual a estrada circundava parcialmente, e sendo obrigado a trafegar com velocidade extremamente reduzida por causa do péssimo estado de conservação da pista, pode avistar mais detalhes daquele lugar. Havia algumas casas coloniais em ruínas com poucos adereços e outras de pau-a-pique. As construções tinham aspecto precário e era visível que não dispunham nem de energia elétrica ou de água encanada. Observou por alguns segundos os flagelados bronzeados que se deslocavam uniformemente. Com exceção das crianças que avistara brincando alegremente em um descampado, o semblante era de aspereza e esquecimento. Alguns animais que pareciam ser bodes e cabras se espalhavam pelo relevo. Um casarão colonial mal conservado postado em uma das margens da estrada lhe proporcionou uma visão marcante: Devido à proximidade pode olhar os olhos opacos de uma mulher negra de tez envelhecida, mas que parecia ainda não ter sido completamente abandonada pelo frescor da juventude. Ela tinha um lenço colorido na cabeça, braços fortes a mostra, bustos largos e apoiava os cotovelos sobre o parapeito da janela. Um braço apoiava a cabeça e a outra mão segurava um charuto aceso, o olhar era perdido. Ela olhava para fora como se teimasse em esperar por algo, mas parecia não ver nada que lhe agradasse o suficiente; enquanto a vida passava inevitavelmente galopando por ela.

Bem no topo do morro se destacava uma construção suntuosa semelhante a um castelo. Vendo os corpos franzinos que passavam por ali de almas nem tão raquíticas assim, imaginou que aqueles deveriam ser os aposentos reais de Momo. Pensou em entrar naquele lugar curioso e de forma intempestiva pegou a saída de acesso. Logo em frente havia uma rotatória cujo centro era ornamentado por uma simples imagem que devia ser de um santo qualquer. Refletiu angustiadamente que fora as crenças teológicas e justificativas que faziam com que aquele lugar fosse a muito esquecido até pelo diabo, pensou que estas pessoas não poderiam ser abandonadas por um governo que em teoria é do povo. O contraste da atmosfera que se tornara fúnebre com a alegria das crianças que vira brincando no descampado era desolador. Seu coração, como o de qualquer outra pessoa de bem se comprimira com a dor que os olhos não podiam ver. Tudo passou muito rápido em sua mente, a tempo ao menos de contornar novamente a rotatória e ir-se embora dali. Sensibilizou-se de certa forma quando percebeu que a superfície em que viviam era a mesma, e que eram indivíduos da mesma espécie. Mas deu um sorriso amarelo e meio nefasto ao se contentar de certa forma que não fazia parte de tal realidade e o melhor seria mesmo esquecê-la. Essa imagem lhe acompanhou até que chegasse onde era esperado, e o sono fosse lhe acalmando aos poucos na medida em que tomava seus sentidos. Por fim adormecera. Sonhou com as cores do cair daquela tarde sobre os imponentes flamboyants floridos na beira da estrada logo após ter passado por aquele vilarejo e prosseguido rumo ao seu destino.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Eu quero ver gol

- Goooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooool!!!
Simplesmente inexplicável.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Aurora de um novo dia

Acordou e pode observar rapidamente que ainda estava escuro. Estava suado, atordoado e suas idéias estavam bem longe de estarem postas em algum lugar. Ao se virar caiu da cama. Sem perceber exatamente o que tinha acontecido ficou sentado no chão gelado. Levantou-se e partiu descoordenadamente e nu em direção ao lavatório. Sentou-se na beira da banheira e abriu o registro. Ficou ali sentado esperando que esta enchesse. Desde pequeno adorava banhos de imersão e precisava tirar aquele ranço do corpo, lavar-se. Tentava, mas não conseguia conter a água por muito tempo em suas mãos dispostas separadamente em formato convexo. Antes que esta escorresse totalmente por entre seus dedos lavava o rosto incansavelmente como se quisesse se esquecer de algo que tinha visto. Deixou com que todo seu corpo escorregasse lentamente para dentro da água fumegante. Relaxado, prendeu a respiração e imergiu a cabeça. Quando o ar já lhe faltava retornou ao mundo e mal percebeu que a espuma que tomava conta da banheira também escorria por todo piso do cômodo. Após alguns minutos saiu e alcançou o roupão. Que privilégio era poder tomar um banho daquele. Saindo do banheiro e de volta ao quarto viu pela janela que mais um dia estava para nascer, então se dirigiu ao deck para apreciar tal espetáculo. Ali, jogado de maneira desleixada numa poltrona pensou que talvez ser humano nenhum fosse capaz de produzir arte tamanha para ser comparada a belos nasceres ou pores-do-sol. Ficou imóvel, e incomunicável enquanto apreciava com admiração o alegre espetáculo do sol por poder brilhar mais um dia. Após a aurora cochilou por mais algumas horas.

Despertou mais calmo e comeu algumas frutas com iogurte. Havia se decidido a cuidar da sua saúde. Mas, como em mar aberto, a calmaria não tardou muito a passar. Aquela parte presente em todos nós que é ressaltada mais em alguns indivíduos e menos em outros, a da contestação ao estabelecido, clamava dentro dele. Seu lado selvagem uivava. Sentou-se para pensar. Ao invés de ingressar no altar de Deus preferia buscar suas próprias respostas concretas. Mas o que se podia fazer com o essencial que não é visível aos olhos? Ouvindo o suave cair das gotas da chuva nas folhas próximas a janela ao seu lado e pela a qual entrava um vento húmido e prazeroso durante aquela quente manhã de verão imaginou que talvez não fosse realmente feliz, se arrependia de muita coisa a ponto de não querer repeti-las novamente. Pois acreditava que, como havia dito o poeta, a vida é o que fazemos dela e o que vemos não é o que vemos, senão o que somos. Mas essas águas de março prometiam algo a seu coração. Lembrar-se da existência de poesia lhe causou tamanho prazer que pensou automaticamente naquela apresentação magnífica, a performance daquele violoncelista, e o prazer se disseminava por seu corpo na medida em que sua memória recriava o concerto. Seus pensamentos fervilhavam em sua cabeça, mas não a ponto de fazê-lo esquecer que a alienação consumista e a solidão humana eram para ele algo intrinsecamente dependente da organização social. Acreditava que o livre arbítrio poderia ser conciliado ao coletivo, através da capacidade humana de discernimento e de bom senso. Era muito importante para ele teimar em não rejeitar o bom selvagem. Era como se algo tivesse para se tornar explícito a sua consciência. Lembrou-se de sua última aula ministrada na universidade em que havia discutido o Mito da Caverna com seus alunos. A sensação era como se soubesse exatamente o que fosse a luz, pois havia passado tempos de militância na escuridão.

Em seu turbilhão de pensamentos era como se a caixa que Pandora recebera de Zeus tivesse sido aberta há pouco tempo, e que vivemos todos os infortúnios em uma espera pacata pelo que há em seu fundo. Seu coração palpitava sem limites, e se perguntava o que o fazia bem. Sabia apenas que nada disso era original, e isso lhe fazia um imenso mal. Perguntava-se se a tendência ao comodismo seria um Brutus dentro de todos nós, e fez mais uma refeição. Ficou um bom tempo andando de um lado para outro sem objetivo, e ao olhar pela janela a chuva que caía do alto sobre a cidade sentiu a estranha sensação de poder interpretar uma incógnita que lhe atormentava freqüentemente. Tinha um sublime prazer com a degradação humana. Odiava-se de certa forma por isso, mas estava cansado da luta. Message to Love: Raise your hand to Love somebody. Olhar pela janela uma mera chuva que cai e é capaz de alterar tanta coisa na vida das pessoas fazia de certa forma com que seu lado cínico se deleitasse. Ah! O céu! Já havia perdido sua religião, até não sabia mais o rumo de sua ideologia, não podia, portanto se desapegar da fé, a fé nas pessoas. Sabia inconscientemente o quanto essa luta era fundamental. Só queria acreditar em uma forma de recoletivizar o ser humano, e que o fato de existir não seja tudo o que faça. Isso lhe havia consumido de tal forma que já era tarde da noite, e adormeceu ali mesmo, no deck. Acordou apenas com o sol, obrigando seus olhos a contemplar o novo dia. Com os olhos ainda meio fechados relutou, mas acabou por se levantar e ficar mais uma vez estendido ali. Percebeu que o sol, após seus raios terem aquecido o conhecido e até o desconhecido, já não era mais o mesmo da aurora anterior. Ele é que ficara ali, parado, imutável, estático.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Ironia da Passividade

Acredito ser muito interessante se analisado de um ponto de vista social a forma correta de se cozinhar uma rã buscando manter a textura suave de sua carne e seu sabor. Pessoas do ramo podem facilmente confirmar a semelhança de tais animais quando confinados a um rebanho bovino: pacatos, alienados e seguindo os rumos que lhes são determinados quase que sem contestação. No momento de se fazer o cozimento da rã, nunca se deve jogá-la diretamente em água fervente, pois isto faria com que a carne enrijecesse consideravelmente devido à tensão do animal e que este pudesse eliminar dejetos na panela de cozimento o que não seria agradável ao paladar do consumidor final. Portanto, a forma mais indicada pelos melhores cozinheiros (uma vez que não é aconselhável matar o animal de forma rudimentar antes do cozimento pelos mesmos motivos) é de colocá-la em um recipiente com água em temperatura ambiente. Em seguida ligue o fogão em fogo baixo e espere alguns instantes. Com a água já mais morna o animal se acostumará mais facilmente ao seu novo habitat, e relaxado, provavelmente irá se questionar sobre os motivos que regem freneticamente a vida das pessoas os quais são baseados na individualidade e no capital. Para aqueles que não apreciam o paladar natural da carne de rã é aconselhável que adicionem um pouco de condimento a gosto nessa fase do processo; sendo aconselhável a adição de páprica, mostarda ou pimenta do reino em pó. Relaxado e pouco preocupado, o animal da classe Amphibia mal se dará conta da elevação considerável na temperatura da água e terá seu fim como ser vivo em água fervente da mesma forma; mas será degustado por outro ser vivo de uma forma muito mais prazerosa. Assim a rã abdica de seu livre arbítrio a fins de degustação e tem uma morte um pouco mais humanitária. Pode ser servida com inúmeros acompanhamentos dependendo da estação. Seguindo esta forma de preparo a carne será inevitavelmente tenra, saborosa e terá ótimo aspecto visual. O cozido combina perfeitamente para ser apreciado com um bom vinho branco.