terça-feira, 21 de junho de 2011

Homem ao Rum

Talvez tenha sido Napoleão Bonaparte um dos personagens ocidentais mais lúdicos encenados nessa grande peça chamada história. O poder e os deslumbramentos humanos a cerca dessa figura podem ser observados sendo que até Karl Marx escreveria sobre seu 18 Brumário, e também no fato de que a presença do imperador francês nos manicômios e sanatórios pós-modernos é algo de praxe e de regra. Em 1799, o “golpe branco” liderado pela alta burguesia e o exército franceses conferiram a este que era o general com mais prestígio no país o cargo de Chefe de Estado frente à instabilidade da época do Diretório. Neste ano em que seria promulgada a Constituição do Ano VIII, Napoleão regressara à França – antes de ser empossado – com o sentimento penoso de ter sido testemunha ocular da estrondosa vitória da marinha real britânica na batalha do Nilo comandada pelo almirante Horácio Nelson. Contudo, ao se empossar imperador tirando a coroa das mãos do Papa durante a cerimônia, Napoleão ainda causaria muita instabilidade ao sistema do Antigo Regime. Neste momento em que a alta burguesia buscava consolidar seu projeto na França após a revolução era visível o crescente atrito com os britânicos em contexto sistêmico de disputas capitalistas.
O almirante britânico talvez tenha sido o maior rival de Napoleão no âmbito militar. Seu antagonista que havia derrotado a frota francesa detentora de um poder de fogo superior na baía de Abukir velejava não apenas em prol da coroa e da pátria, mas defendia subjetivamente também os ideais liberais como os estabelecidos na Magna Carta ou no Bill of Rights. Ao descobrir os navios franceses na baía de Abukir em 1798, Nelson haveria – como na batalha do Cabo de São Vicente – dito: Amanhã, por esta altura, ou terei ganho a honra ou a catedral de Westminster. Na virada do século, ambos já rumavam a seus destinos. O futuro almitante defendeu a rainha dos mares, a qual um dia não muito distante haveria de dizer:
– Venham até mim, pois lhes comprarei de tudo. Assim irei também até vós, a vender-lhes tudo. Ofereço-vos abertamente meu pulsante coração, e pelas artérias do mundo circularão libras, uma vez que a pólvora carregada em meus navios sozinha não seria suficiente para clamar o grito: padrão ouro e constitucionalismo. Apresento-vos a minha Pax cujo esplendor ofusca os não-civilizados. Mortais, eu vos alerto, a primavera dos povos não é senão inverno infrutífero tal qual o canto das sereias. A interdependência e as vantagens comparativas a todos beneficiarão, pois governar não é para todos. Eu mesma serei minimizada, para o bem futuro da riqueza das nações. Clamo por vós, oh destemidos homens livres, e ofereço nada menos que a encarnação desses axiomas supremos, algo que transcende o metafísico e além da simples coerção; algo que mudará os rumos da história para sempre.
A destreza dessa rede acumulativa finalmente acabaria por afinar os acordes do grande violino ao redor do globo, e sob o toque de sua magna ópera os sorrisos dos homens jamais seriam os mesmos. Os homens livres seriam apenas pouco mais que força de trabalho e súditos do Leviatã. Ambos patriotas, Nelson e Bonaparte, figuraram não apenas como estrategistas militares inovadores e decisivos, cada um a sua maneira e em espaços físicos distintos, mas também como grandes inspiradores de seus homens. Se o almirante ficara conhecido pelo “toque de Nelson”, ao general se atribuía a habilidade de alcançar a alma daqueles que lutavam a seu lado.
Mediante esse contexto de disputas, a paz de Amiens provou-se pouco duradoura. No ano em que as hostilidades eram retomadas, Napoleão coroado, Nelson era elevado a comandante das tropas britânicas no Mediterrâneo. Os anseios franceses se voltavam cada vez mais para a possibilidade de controlar o Canal da Mancha, que por sua vez esbarrava na poderosa marinha real britânica. Os franceses buscaram confundir seu adversário com a finalidade de concentrar seus navios na região evitando que os britanicos fizessem o mesmo. Esse movimento acabou acarretando a Batalha de Trafalgar, nome cuja designação árabe significa cabo do oeste. Este conflito entre a marinha francesa e espanhola, que contava com maior quantidade de navios, contra a britânica ocorreu no ano de 1805 na costa atlântica espanhola, na região do Cabo de Trafalgar, próximo a Gibraltar. Com uma manobra audaciosa a esquadra britânica em desvantagem numérica acabou vitoriosa sem ter um navio afundado, destruindo cerca de dois terços da frota adversária e capturando seu comandante Villeneuve. Contudo, Nelson fora atingido pelo bombardeio adversário e não resistiu.
Se por um lado os franceses não alcançaram seu anseio e ainda perderam o controle do mediterrâneo, os britânicos perderam seu lendário comandante. Contudo, o cadáver de Nelson, que já contava com a lembrança de um olho moribundo e um braço amputado oriundo de combates anteriores, não poderia ser tratado como o dos demais mortais que eram atirados ao mar. Como nenhum dos marinheiros fora capaz de ordenar ou executar o ato de praxe, resouveu-se que o corpo do almirante seria levado até as terras de sua pátria-mãe. A maneira encontrada pelos marujos de conservar o defunto foi a de guardá-lo junto ao que carregavam de mais precioso. Assim, o de cujus foi submerso em um dos vários tonéis de rum que o navio carregava. Esse produto tão apreciado pelos marinheiros era de vital importância ao bem estar coletivo da tripulação. Contudo, as perseguições aos seus inimigos e o longo tempo distante de um ancoradouro reduziram significantemente a quantidade da bebida armazenada nos navios, a ponto que, antes que a esquadra chegasse ao Reino Unido, tornou-se inevitável o consumo de parte do tonel de rum no qual se encontrava o cadáver de Nelson. Segundo algumas líguas perpetuaram pelo tempo, esse ocorrido acabou criando um jargão na marinha que seria carregado para boa parte do globo: beber até o morto.
Nelson, assim como tantos outros havia ganhado a ambos, a eternidade e a sepultura, e fora enterrado com glórias de Estado. A sua morte na Batalha de Trafalgar imortalizou suas entranhas na Coluna de Nelson disposta na Praça Trafalgar em Londres. Conjunturas e homens tecem a história, mas a história por sua vez não reconhece a todos, apenas a poucos; aos quais são conferidos homenagens à suas designações e carcaças mundanas. Assim monumentos e estátuas se expalham pelas cidades, servindo de anteparo aos desenvergonhados ratos voadores e seus dejetos.