segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Olhar de Criança

Passou os dedos vagarosamente sobre aquele velho móvel de madeira que estava abandonado e sem uso. Imaginou que havia sido ele um dia uma árvore, se questionou o quanto havia chovido para que esta árvore crescesse e se ela havia chorado quando foi cortada. Sentira um discreto pulsar de vida naquele pequeno móvel. Lembrou que aquele móvel pertencera a sua mãe. Carregou-o com cuidado para fora e começou a lixar sua superfície. Lixava cada vez com mais intensidade para remover a crosta das diversas camadas de tinta e ia descobrindo uma tonalidade sob a outra. À medida que lixava se esquecia do mundo e das diversas coisas que se comprometera a fazer. Horas depois, percebeu que a superfície já não era mais tão áspera. Passou a lixar com mais delicadeza, sentindo cada movimento, se atentando aos ricos entalhes da peça, sem desgastar o material em demasia até que removesse os últimos resquícios de tinta. Assoprou forte repetidas vezes para que pudesse enxergar com mais clareza por sob a poeira. A cortina já caíra por sobre o espetáculo do céu sem que ao menos notasse a revoada. Passou a mão espalmada e ferida sobre a superfície da peça e sentiu como se houvesse encontrado finalmente a vida daquela árvore que ali era retida. Continha em si a alegria que apenas olhos de criança podem ver, era como se enxergasse algo pela primeira vez. Agora sim poderia entender os Hidden Secrets de Pollock. Protegeu a peça do sereno e decidiu que amanhã acordaria cedo para comprar verniz e passar a primeira demão.
Dormira em paz, mas ansioso pelo amanhecer. Logo cedo já dava as primeiras pinceladas. Terminou a primeira demão rapidamente e deixou-o ao Sol. Ao final da tarde já concluía a segunda demão com tal concentração e perfeccionismo que se desconcentrou apenas com o bater de asas de um bem-te-vi, que deixava o tremulante galho da palmeira. Colocou a peça em lugar coberto e não se preocupou com a umidade, pois havia sido um dia quente e seco. Já sabia até o lugar da casa em que colocaria o móvel em destaque. Foi se deitar pensando no verniz marítimo que protegeria seu móvel por muito tempo e sem a ansiedade inicial de vê-lo pronto. Quando acordou foi imediatamente olhar o resultado após seu café da manhã e antes de sair para o trabalho. De imediato constatou que não havia ficado como o esperado, com algumas falhas no acabamento. Ficou descontente por alguns segundos, mas sorriu após fechar os olhos e recriar uma cena de sua mãe lhe dizendo com ternura quando era criança: meu filho, às vezes nós não podemos ter tudo o que queremos; é sempre melhor ter um pássaro na mão do que dois voando.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Ela

Clama dentro em mim o amargor do amor contrariado.
Não entendo porque,
Não posso tê-la comigo, se vejo
Em teus olhos, o desejo recíproco.

Porque foges de mim?
Se teus olhos furtivos,
Também me seguem, assim como
Os meus te desejam, onde quer que estejas.

Queria apenas poder sentir
Como na plenitude de um simples toque seu
O sabor de teus lábios, como sei
Que realmente gostaria que o fizesse ousadamente.

Na única vez que a viste,
Descomposta de tua armadura,
Me olhaste de canto,
E fechaste a porta.

O que temias, se a alvorada pensa em ti
Um beijo? Uma última dança?
Dê-me sua mão, e um breve momento
Fique comigo, até o sol raiar novamente.

Pois o sono não me alivia,
Daquele olhar selvagem e doce
Tão capaz de me emergir em poesia.
Queria apenas poder sentir intensamente, sem o mundo, um reeditado momento.