segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Apenas mais um fora-da-lei

O garoto, com os vívidos olhos atentos, se encurvava cada vez mais em direção ao avô. Nada, além do enorme respeito e de uma profunda curiosidade poderiam domar aquela geniosidade juvenil para que ficasse calado, entretido, a todo ouvido. O avô sabia disso, e como a compania lhe era agradável continuou a história: Ele mal sabia que aquele último apito nunca iria lhe sair da cabeça. Respirou fundo buscando controlar seus nervos, e pulou da ponte sobre um dos vagões. E como era habitual foi saltando de vagão em vagão até chegar a locomotiva a vapor. O longo e demorado apito já fazia com que mais fumaça dançasse entre o céu e a terra quando rendeu o maquinista com sua velha companheira calibre 22. E logo depois da estação daquela pacata cidade perdida no meio do nada, fez com que parasse o trem. Antes de sua parada completa, outros homens que se aproximavam do trilho subiram em alguns vagões. Saíram com muitas malas de couro, carregaram-nas sobre os cavalos amarrados próximos dali, e desapareceram mais rápido do que haviam se aproximado. Após a divisão não muito amistosa em um celeiro abandonado não muito longe dali, reafirmou que este era seu último assalto. Seus comparsas insistiram, mas não muito, pois o respeitavam e não queriam contrariá-lo. Sabiam ser impossível sem ele. E assim partiu, já era hora de voltar a sua casa.

No cais de Liverpool, onde comprara uma viagem até a Irlanda, notou uma movimentação estranha. Em seguida tiros. Quem era vô, a polícia? Os bandidos? Ele escapou? Ele afirmou nuca saber de onde vieram os tiros, mas astuto que era conseguiu despistar seus perseguidores facilmente. Porém na pressa da fuga só percebeu que estava no navio errado quando se acalmara com a visão esplêndida do alto mar. Descobriu que estava vindo pra cá, o Brasil. Sério vô? Claro, e como você pensa que o conheci! Eram meses de viagem naquela época. Conheceu dois estudantes aristocratas daqui que cursavam medicina e direito na Inglaterra. Aprendeu algumas palavras de português com eles durante o trajeto, entre um jogo de cartas e algumas cervejas, e acabou os cativando com seu jeito de ser. Era realmente um sujeito intrigante. Compartilharam histórias e confissões, e os garotos ficaram surpresos com as inúmeras aventuras daquele rapaz apenas um pouco mais velho que eles. Mas quando lhe foi perguntado afirmou: Claro que tenho medo! É normal, é isso que me manteve vivo; por sei lá que raio de motivo. Os confessou que havia decidido parar, pois, da última vez o apito havia soado antes de dominar o maquinista, algo que nunca acontecera antes. Passou a temer o medo. O mar assim como a jornada parecia infindável. E depois de muito tempo esse peregrino, assim como muitos, adoeceu no navio. Por incrível que pareça, era normal isso, contrair alguma doença nessas viagens pestilentas.

Ficou tão combalido que delirava e nem percebeu que chegaram ao Rio de Janeiro. Após longos meses de viagem, seus novos amigos se comoveram, afinal ela não tinha para onde ir, e decidiram levá-lo consigo. Foram todos conduzidos até a sede da fazenda da família e o médico logo fora acionado. O pai a princípio ficou meio receoso com a atitude dos filhos, mas decidiu esperar que o pobre diabo se recuperasse. Com sua eminente recuperação, a pedido dos estudantes, quase que diariamente após o jantar o novo visitante passou a contar suas histórias, em terceira pessoa para não assustar ninguém, e ganhou ainda mais admiradores. Pode perceber que grandes olhos castanhos o observavam com ternura e atenção, noite após noite. Aqueles olhos o fascinavam, e pareciam ser capazes de ler sua alma. Mesmo com o receio do pai acalmado parcialmente pela mãe, pela filha e pelo padre do vilarejo que ali se reunia algumas vezes, este permaneceu e ganhou um emprego de capitão do mato. Aquele lobo selvagem só aceitou tal proposta porque aqueles olhos o obrigavam a ficar ali. Entendiam-se com olhares; não apenas devido a uma comunicação problemática de um português ruim e um inglês não muito melhor, mas a sintonia entre ambos. E com a reciprocidade dos olhares e com a convivência, não podia mais mal tratar aqueles seres que nunca havia visto antes. Ela era estudada, tinha olhar crítico e alma indomável. Amaram-se ardentemente, e com o posicionamento ferrenho do pai, se viram como animais acuados, enjaulados. Não pensaram duas vezes, e não antes de libertar aquelas outras almas enjauladas, o anseio por liberdade e a ardência do sentimento os fizeram ser vistos pela última vez naquele mesmo porto do Rio de Janeiro, do qual ele mal se lembrava.

Como rapaz, a moral da historia? Ah, é que não precisa ter necessariamente uma moral. Viveu buscando não se arrepender, sem tirar o brilho do olhar para o que acreditava, amou como nunca imaginara e morreu com naturalidade, como qualquer outro deveria fazer.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Vida

Admirava as belas manhãs como aquela, com o dia ainda nascendo e as luzes que faziam com que tudo, do horizonte aos seus pés, tenha mais brilho. Era isso, o brilho. Caminhava em seu trajeto habitual, com sua vestimenta habitual e um bom-humor não muito usual. Amava seu trabalho apesar de tudo. Parou por alguns segundos e deu atenção aos pássaros, achou aquela melodia linda. Apesar desta não conseguir afastar seus pensamentos das canções de choros entristecidos. Olhou para o céu azul e sorriu. Entrou no hospital e aquele choro emudecido com uma nostálgica e melancólica mensagem se perpetuava sobre seu sentido. Acabou de colocar o restante apropriado de sua vestimenta que se fazia ali tão necessária. Poucos passos naquele gélido e longo corredor foram necessários para que o encontrasse. Perguntou ao Oncologista qual era o estado daquele “estômago” do quarto 146, e seu olhar lhe respondera com uma tristeza quase encoberta por ceticismo. Ele é uma pessoa doce, disse, vou subindo na frente e te encontro lá então. Desapareceu pelo labirinto. Lembrou-se de quando presenciou seu primeiro óbito, e no que o medico lhe dissera: Essa burocracia pode parecer assim meio desumana, mas é assim que as coisas funcionam; agente se acostuma a tudo.

Pediu permissão e entrou. Aquele pobre diabo já tinha um aspecto cadavérico, estava amarelado e definhava já havia muito tempo. Sua respiração fazia um barulho grotesco que de certa forma incomodaria pessoas não acostumadas a isso. Tinha um olhar triste e opaco. Ela ajustou a cama, passou-lhe um pano sobre a testa suada e verificou a dose do soro. Está suado, andou tendo sonhos ruins, perguntou-lhe. Com uma voz rouca, após relutar um pouco ele diz: São esses espectros. Tudo bem, sempre fui perturbado assim, não se preocupe. Revidou: Não senhor, estou aqui pra isso. Preocupar-me é minha função e me orgulho muito dela. Ele disse: Eu acho que nunca vou conseguir me entender e ficar em paz comigo mesmo. Vou morrer sem ver nada de novo. Ela se aproximou do leito, passou lhe a mão nos cabelos ralos e brancos e tentou intervir: Não, não é assim. Você, você... Detestava esses momentos, não tinha sido treinada para isso. Ele tossiu um pouco e continuou: E se não consigo encontrar paz em mim mesmo, como acho que muitos também não consigam, como ainda posso sonhar com a paz da coletividade em larga escala? E sem sonhos, o que nos resta? Carne? Acalme-se e descanse, ela retrucou, vou apressar o doutor. Saindo do quarto, antes que pudesse fechar a porta, os aparelhos começam a apitar intensamente.

Após o fim do expediente e de volta a sua casa, ouviu o choro da criança antes de girar a chave. Correu ao seu encontro e amamentou-o carinhosamente. Seus olhos eram vivos, brilhantes e observavam tudo ao redor. Colocou-o no berço e foi ver como estava sua mãe. Na claridade artificial do cômodo mal havia notado que o brilho da tarde se esvaíra e que uma bruma cinzenta tomara o céu por completo. Dispersou a atenção ao olhar fixamente pela janela e viu as mesmas antenas, prédios e torres que não deixavam que restasse muito do céu a observar e que continuavam a piscar como sempre. Na verdade achou o brilho mais intenso, devia ser o contraste com aquele fundo sombrio que o céu formava. Perdeu-se nessa visão descomunal e estranhamente reconfortante, sem se incomodar com seu caráter assustador. Pareceu-lhe ser algo novo, nunca havia testemunhado coisa parecida, dificilmente saia da rotina. Isto lhe causou certa paúra. Quando se voltou, viu a mãe recostada na poltrona onde costumava ler. Ela já não respirava mais.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Vertigem

Lágrimas melancólicas correm vagarosamente por seu rosto, quentes, amargas, e morriam em seus lábios. Sua visão é tomada cada vez mais pela bruma espessa da insanidade. As respostas dadas por seu credo não eram mais um anestésico para a dor, seu médico há muito nada podia fazer, seus sonhos lhe haviam esvaído por entre os dedos, a ampulheta estava virada há tempos e não havia se apercebido. Seus ombros são baixos e refletem seu desânimo, a carga sobre eles é tamanha que pareciam estar prestes a desabar. Tinha medo, mas não sabia necessariamente o que temer. Achava que não seria justo se acabasse com tudo repentinamente, acreditava na arte de viver. Mas seus pulmões se comprimiam e o ar se tornava mais escasso, assim como a bruma se tornava mais densa e envolvente.

Detestava passar noites mal dormidas, isso lhe causava mau-humor, e há muito já não dormia bem. Tivera um sonho angustiante, depois de nem se lembrar da última vez em que sonhara. Em seu sonho as íris de seus olhos eram opacas, sem vida, e de repente sua cor se misturava com a água de uma visão submersa, a pressão sob seu peito crescia vertiginosamente, a luz refletia de forma esplêndida vista de dentro da água, tinha uma sensação de atordoamento e a superfície era cada vez mais distante. Repentinamente enfrentou a água com a velocidade de um torpedo, seu tronco se posiciona a quarenta e cinco graus de seu quadril. Havia emergido do azul, estava livre parcialmente, mas ainda sim não conseguia inspirar o ar com plenitude. Estava ofegante e o suor lhe escorria pela testa. Viu que ainda era escuro, mas mesmo assim se dirigiu ao lavatório. Precisava de uma ducha. Deixou um papel sobre a mesa e saiu andando.

Precisava de algo para sonhar, desejar; pois bem se sabe que amamos mais desejar do que o próprio objeto de nosso desejo. Talvez fosse isso que lhe faltasse. Mas odiava involuntariamente tudo, e se odiava mais pelo seu ódio. Sua autocrítica esmagava seu ser. Parecia se deparar em um ponto do caminho onde não mais haviam saídas. E isso de certa forma era até consolador, só havia uma escapatória. Depois de responder essa questão, nada mais se fazia importante. Dali onde estava ventava muito, sentia o frio em seu peito parcialmente descoberto onde se mostrava sutilmente um pingente radiante. Queria poder amar a vida intensamente, parou ali com o mesmo peso que é carregado por amantes mal resolvidos. Enquanto caminhava lembrou-se de quando era adolescente e da pergunta que ouvia freqüentemente: Porque teima em nadar contra a correnteza? Nunca teve tal resposta.

Observa tudo daquele ponto alto, pequenas luzes que passam e ficam, acendem e apagam. Vertigem. Volta-se para a lua que paira magnânima, enorme e brilhante. Não se lembrava de tê-la observado tão atentamente e por tanto tempo, era como se ela quisesse lhe dizer algo. Derramou apenas mais uma solitária lágrima. Ao mesmo tempo em que o frio tomava conta de seu corpo, se surpreendia com sua calma. A razão era algo pesado a ser carregado em tais circunstâncias. O som da cidade que se perdia de vista era de um blue piano que tocava a alegria de viver em um ritmo local. Olhou para o vazio sob a iluminação imponente da lua escutando o som que tocava incessantemente apesar do horário avançado. Inspirou, o ar veio de uma forma abrupta e profunda, a sensação era como a do primeiro e inesperado coito da juventude. Sentia o prazer se disseminar por seu corpo gélido. Quando repentinamente olha para o lado após ouvir um sussurro que disse: Vamos sair pra ver o Sol. Entrelaçam os dedos e se vão, em vão.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Ele & Ela

Ele olhava carinhosamente para ela, nada mais importava naquele momento. Tinham de correr como fugitivos foras-da-lei para viver essa vida. Tocava seu corpo de curvas sinuosas com a voracidade dos dedos disfarcadamente pacientes. Adorava tê-la posta contra seu quadril, junta a si, formando um só corpo, sob o campo de seus olhos fixos, sob o alcance de seus dedos precisos. Ela clamava pelo toque de seus dedos e perguntava se ele estava bem. Ele pensava: Devo estar bem, meu coração continua a bater. A adorava e esperava ouvir os sons da resposta de uma manifestação recíproca. Não sabia se era necessariamente amor, mas os sons que ela fazia falavam por ele. Era a única que enxergava seu verdadeiro ser, sem necessariamente entendê-lo. Ela o exprimia da melhor forma possível. Sem ela, sentia-se incompleto. Inclinava a cabeça, virava-se para ela, tocava-a nos lugares exatos, nos momentos exatos e o som era perfeito. Música para seus ouvidos. Ali, era como além do arco-íris, era como se fosse amigo do rei. Um artista com o cunhão do verdadeiro significado da palavra. Tinha amor, esperança, e conhecia o seu verdadeiro eu. Esses momentos de toques e sons incessantes eram seu ópio, tudo se resumia em vazio naquela hora além daquilo. Daquilo, era impossível achar uma definição, podia ser tudo. O amor extrapolava suas veias e clamava sob seus dedos através das cordas dela, vocais. Os sons se espalhavam, e aquilo podia ser algo capaz de mudar o mundo. De mudar tudo pra sempre. Não podia ficar sem ela, sem sua voz, sem aquilo que lhe proporcionava. Era mágica. Muito além da ilusão dos campos de morango. O amor como a canção só tem razão se a cantar, não havia ele sem ela e música sem os dois.

Ela & Ele

Ela acabara de perceber: ainda era uma criança. Não apenas sedução, era algo muito além. Olhava para ele fixamente, se perdia em sua visão, ele a distraia. Jurava ser a última vez. Mas vê-lo assim tão penetradamente com o movimento do círculo de fogo que o consumia era algo contra o qual não podia lutar. Adorava vê-lo queimando a frente do fundo que era o céu estrelado, virando cinzas com o passar do tempo, emitindo um sinal de fumaça de socorro. Mas não voavam mais heróis em seu céu. Parecia não haver mais nada em que se acreditar. Pelo menos estes a alegravam, ele e o céu, mesmo que de uma forma melancólica, ao lhe mostrarem todo seu brilho sutil. Deu mais um trago, olhou para ele novamente, odiava sentir-se como se a luta fosse em vão, sem propósito e com as cartas já marcadas. Por isso talvez ele a atraísse tanto, por isso talvez precisasse tanto dele, talvez por isso precisasse inspirá-lo apaixonadamente para dentro de seu próprio ser. Ele se misturava dentro de seu corpo como uma célula sem metabolismo próprio. Ele era ela, ele era dela, e ela era por fim ele, e ela dele. Percebeu amá-lo, mas perdeu-se desse pensamento ao tentar se lembrar da descoberta anterior, da qual também havia se esquecido. Esse era o momento em que passava a odiá-lo, a se odiar por estar com ele. Tentava se persuadir de que tudo era melhor antes de conhecê-lo, que estes poucos momentos de prazer não eram suficientes para manter uma relação como a que ela queria. Ele a fazia mal, mas ela era incompleta sem ele. Queria Jogá-lo fora, abandoná-lo. Mesmo assim sua primeira vez era inesquecível. Detestava-o ainda mais por ser tão cativante. Jogou a bituca e acendeu um novo cigarro.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Flores do Acaso

Ele olhou para o lado, levou suas mãos a sua enorme calça xadrez, vestiu-a. Em seguida seus suspensórios, depois alcançou seus grandes sapatos, a peruca calva e colorida, e por último colocou seu nariz vermelho. Indo ao banheiro foi desolado por uma visão: contas acumuladas sobre uma pequena mesa. Continuou seu caminho como se estas fossem imperceptíveis, odiava ser dragado pela realidade. Passou o pó em seu rosto caprichosamente de forma a tentar disfarçar sua pequena e suave cicatriz no supercílio, pegou o enorme arranjo de flores e partiu. Havia comprado mais flores que o habitual, estava vendendo bem e sentia que hoje seria um bom dia. Ele tentava se convencer de que realmente não queria ter as mãos sujas. Seguindo com passos tranqüilos, porém obstinados, ele assobiava durante o caminho, e tudo lhe parecia poesia. Caminhava leve como uma pluma e saltitava com um sorriso irremovível de seu semblante. Observava atentamente o movimento das folhas das árvores que pareciam contentes com o soprar do vento e o suave raiar do sol da manhã, assim como notava as diversas expressões no rosto das pessoas que se cruzavam freneticamente pelas calçadas e seguiam rapidamente a se perder de vista.

Abordava sempre os casais, eram presas fáceis. Mas antes apreciava de forma desolada as ações dos amantes naquele parque. Ele se fazia de sombra, dançava, se expunha teatralizando seus gestos, fazia malabarismos, quando ignorado os ridicularizava; era como se ali fizesse algo de importante e original. Em geral as pessoas riam e se alegravam com ele. Aquele som do contentamento desconhecido penetrava seus sentidos de forma atordoante e parecia lhe conferir algum propósito. Era bom naquilo. Antes do cair da tarde entediou-se e resolveu descansar. Removeu parcialmente a maquiagem de modo grosseiro com um trapo e água do chafariz do parque, guardou seu nariz vermelho e a peruca. Decidiu parar por ali e sentar-se para continuar a ler seu romance. Adorava isso, podia sentir o mundo de outra forma, algo além do que sua sensibilidade podia captar, seus olhos enxergavam ali o que no mundo real podiam apenas ver. Era como se colocasse óculos e passasse a enxergar naquele momento a simples verdade. Seu coração batia, seu sangue fervilhava sem amargor enquanto lia. A tarde foi caindo sem que percebesse e pensou que estava cansado de mais para se concentrar naquela aula, queria aprender da vida, vivendo. Quando a iluminação natural foi se tornando mais escassa e já não podia mais ler com clareza fechou o livro com pesar e decidiu aguardar mais uns instantes para contemplar o sol que estava por se pôr. Blasfemou contra a luz que se deixava morrer, mas contentou-se com o esplendor escarlate de sua morte. As cores faziam um espetáculo à parte no céu.

Sentado, com o dia se esvaindo perante seus olhos pensou na vida longe dali que um dia o havia pertencido e em seus sonhos outrora sonhados. Apercebeu-se de que há tempos não sonhava mais. A tranqüilidade de um outono adormecendo o dominava. A fuligem e secura do ar contribuíam para um pôr-do-sol esteticamente esplêndido, magnânimo. O que o consolava ainda mais era o fato de que o sol brilhava dia após dia em todos os poucos lugares que havia conhecido, e isso fazia com que não se sentisse o único. Incomodava-lhe de certa forma o fato de se adequar pacatamente a solidão. O tom avermelhado tomou conta do horizonte de uma forma impiedosa, até que a escuridão o consumisse aos poucos, e ele partiu. Caminhava leve, chutando as folhas secas caídas no caminho e se equilibrando alegremente sobre a tênue guia com os braços abertos; o caminho era longo. Observava o panorama, gostava de ver a frieza das anônimas luzes da cidade. Quando, tarde da noite, um inesperado estrondo rompe com o silêncio sublime da escuridão. No momento em que o rapaz percebe uma agitação anormal em frente a uma agencia bancária, seguidos pelos estrondos, pequenos projéteis de metal se deslocam vencendo a resistência do ar rapidamente. No momento em que, por motivo indeterminado, a trajetória deles, do metal e da carne, se cruzam. Dois corpos ocupavam ali o mesmo lugar no mesmo espaço de tempo. Ele cai vagarosamente sobre a guia da calçada. Seus braços são vencidos também pela força da gravidade e encontram o suporte frio do chão, então uma de suas mãos deixa escapar as flores que não havia vendido. Seu corpo fica ali ignorado, estático, entre a rua e a calçada, estendido atônito e com os olhos abertos.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Réquiem do Além Mar

Seus passos eram trêmulos e cansados, mal levantava os pés do chão a cada passada, prosseguia em linha de acordo com o cadenciado trote da boiada. Sabia que só quando há valas ou cavas de rios é que o homem põe por riba pontes. Olhou para os rostos e corpos cadavéricos que ali marchavam, as pessoas mal se falavam ou dialogavam de qualquer outra maneira. O foco era o chão, e o trote, sincrônico e inquestionável: réquiem. Era tarde para que aqueles diabos que haviam acordado tão cedo e cujo troco em seus bolsos era tão ínfimo pudessem parar para refletir, com muita calma pra pensar e terem tempo pra sonhar. Não havia como se conduzirem por bossa, a vida precisava ser ganha, sofregamente, dia após dia. O Sol já não pairava mais sobre eles. Tinham na crença, uma prisão, e ao mesmo tempo o anestésico. Tão necessário. Viver era preciso, navegar não. Não se permitiam desejar muito mais do que isso.

Ali se lembrou repentinamente do sonho que tinha de ensinar crianças sem instrução. Prezando por uma ordem, esses bons selvagens tinham ao menos necessidades fisiológicas mínimas supridas. O que faria algo mudar se nem ao menos levantavam o olhar e buscavam enxergar a sua volta; o ânimo para fazê-lo era comprimido por cansaço guerreiro-conformista e pelo medo de se deparar ao lado com uma realidade ainda pior, ou até se enxergar pior. Encurralado a espera de seu trem, bufava, estava com muita pressa, o dia pareceria escorrer-lhe entre os dedos, porém deixando um ranço viscoso na palma de sua mão. Odiava o sentimento de nem poder ao menos reclamar de suas condições e resmungar de sua existência pacata, sabia ser de certo modo privilegiado. Mas vivia sem enxergar nem ao menos viver, e evitava pensar nisso.

Chegando em casa, o filho pródigo do sistema jogou a pasta sob o sofá como sempre fazia, tirou com os próprios pés seus sapatos gastos de forma desproporcional pelo lado de fora os deixando no meio da sala e arremessou-se em frente à TV ao mesmo tempo em que a ligava com o controle remoto. Estava quase na hora de seu seriado preferido. Ao se aperceber que faltavam ainda alguns minutos correu para a cozinha e colocou um congelado no forno de micro ondas. O jornal noticiava imparcialmente como sempre uma guerra em algum lugar mais pobre que o seu. Esperava que aquilo tudo fosse longe de sua casa. Ao tentar refletir minimamente depois de ter sido evocado pelo termo guerra, lembrou-se do cartaz que havia visto de um novo filme do gênero chamado Apocalypse Now. Não sabia por que se importavam tanto, a violência parecia ser algo normalmente cotidiano. Vendo tudo aquilo ouviu o alarme do forno e correu mais uma vez rumo a sua subsistência. Fixou mentalmente na agenda que gostaria de assistir a tal filme. Ficou estressado, odiava a sensação de ter algo por fazer. Mas pouco pensou sobre isso, o seriado estava por começar.

Abriu os olhos, o astro rei já estava surgindo com imponência. Depara-se assim que levanta com contas sob a mesa e ainda estava atrasado. Saiu apressado com sua casaca e maleta na mesma mão, procurou seu mp3, isso por vez o tirava d’ali rumo à imaginação, a inconsciência. Não o encontrou. Estava com pressa e bateu a porta. Também de maneira inconsciente, o barco da vida lhe levava, no rumo em que a correnteza propunha. Arrumou-se dentro do elevador, mais sem de forma alguma mudar seu aspecto desalinhado. Havia partido sem nem ao menos tomar banho ou café da manha. Detestava comer apressadamente. Durante o caminho até a estação já podia sentir o visco em sua pele e isso lhe gerou uma repugnância. Parecia não haver algo de novo no front. Já no trem levantou corajosamente sua visão do chão em rumo da música que se propagava. Era uma gaita, sempre tivera vontade de aprender a tocar, mas era desafinado. Imaginou como seria deixar algo para outras gerações; sair e voltar às fileiras. Mas ali no calor todos se encostam e o sonho da razão produz monstros. Portanto, sem caneta nem papel em mãos as idéias fugiam, esquecera-se.

Aquela música o fazia se sentir bem. Saindo dali, após mais um longo caminho se trancou na gaiola de vidro evitando questionamentos, tudo deveria ser tratado como normalidade. Era nada mais que uma extensão burocrática. Lembrava-se de alguns relacionamentos e se questionava se em algum teria vivido o amor como o das telas de cinema. Pensou que nunca chegaria talvez a um raciocínio sobre lembrança, recordações e amor. Mas sabia que nada era como nas telas. Queria apenas ver gol. Era um solitário, mas ao menos se vangloriava secretamente de ter se livrado dela, aquela que queimava forte, garganta a baixo. Nada se perpetuava muito em seu pensamento e foi atraído pela luz vinda da janela. Ao menos ficava de frente para ela, podia ver o que sobrara do céu. O que mais adorava era quando aviões decolavam e eram vistos ao longe dali. Virava-se apenas para olhar os ponteiros do relógio. A angústia e o desânimo pareciam comprimir seu ser até quase o ponto de expelir lágrimas amargas. Nunca havia sonhado com aquilo. Mas lembrou-se daquela gaita ressonante e respirou. Veredas.

O fim do expediente chegou, saiu. Os rostos pareciam os mesmos, e ninguém lhe oferecia um chá para azia. Não se recordava de ter escolhido tal papel no espetáculo do mundo. Seus demônios queriam falar com ele. O céu perdia a cor, anoitecera. As notas da gaita ainda ressoavam em sua mente e lhe forneciam de certo modo coragem. Decidiu surpreendentemente descartar a última condução e foi a pé. No meio do caminho resolveu parar para urinar, apontou para uma parede em um canto escuro e fogo. Enquanto se satisfazia, pensou na diferença entre homens e animais. Concluiu que talvez os primeiros criassem normatizações apenas para se diferenciarem dos segundos e tentarem se fazer valer de sua categoria de sapiens. Era como se tivesse descoberto o propósito da vida, mas esse pensamento logo lhe evaporou da mente com outras idéias suscetíveis. A visão era a mais linda vista por ele até então. Tantas estrelas para pouco céu.

Sabia que havia se esquecido de algo, agora, da forma mais inconveniente sentiu a sua falta. A necessidade. Estava chovendo. Impressionou-se por não ficar imediatamente irritado. Olhou para cima, sentiu as gotas tocarem seu rosto, não eram amargas como as suas. Abriu os braços, sorria incontroladamente. Fechou os olhos e visualizou repentinamente um malabarista sobre um tênue cabo, segurando o bastão na horizontal, caminhando sobre o infinito. Não conseguia achar a palavra para definir tal sensação inusitada. Começou a rodopiar com os braços abertos, o sorriso no rosto, olhando para cima. Continuou, e as flores do canteiro pareciam mais belas. Gargalhava animadamente. A gaita voltou a ecoar e as gotas não cessavam. O sertão virou mar. Tornara sua vida a bombordo, a prosseguir independentemente da maré, em mar aberto, com o vento húmido e o Sol apenas se confrontando contra seu rosto e sua inevitável trajetória. Nunca mais fora visto ali.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Bom dia!

Espero aqui, fazer algo útil, tentar levar veredas da única forma que me vejo capaz: as palavras. Não sei mais o que esperar da vida, mas algo em mim diz que não estou errado quanto a isso. Espero assim, de uma maneira gratuita fazer algo que possa interessar a alguém; significar algo, dizer algo. Gostaria que minha primeira postagem fosse uma crônica denominada de “O Trenzinho Caipira”, não pelo seu conteúdo, mas por seu significado pessoal especial. Mas infelizmente não a considero ainda acabada, e talvez nunca o faça. Então decidi deixar um recado aqueles que eventualmente passem por aqui.
Venho apenas como mais um gato sobre telhado de zinco, com minhas palavras ordinárias e anônimas buscar dialogar com meus diabos e tentar realmente dizer. Não sei se o que tenho a falar é de considerável importância aos outros, mas se nos sentimos tão cheios de coisas a dizer, me pergunto qual a razão para não fazê-lo. Sendo assim, cheguei aqui neste espaço, como um sonhador jovem de mais para se desiludir buscando como todos encontrar nosso farol no meio da espiral, com muita calma pra pensar e tempo pra sonhar.