segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Aurora de um novo dia

Acordou e pode observar rapidamente que ainda estava escuro. Estava suado, atordoado e suas idéias estavam bem longe de estarem postas em algum lugar. Ao se virar caiu da cama. Sem perceber exatamente o que tinha acontecido ficou sentado no chão gelado. Levantou-se e partiu descoordenadamente e nu em direção ao lavatório. Sentou-se na beira da banheira e abriu o registro. Ficou ali sentado esperando que esta enchesse. Desde pequeno adorava banhos de imersão e precisava tirar aquele ranço do corpo, lavar-se. Tentava, mas não conseguia conter a água por muito tempo em suas mãos dispostas separadamente em formato convexo. Antes que esta escorresse totalmente por entre seus dedos lavava o rosto incansavelmente como se quisesse se esquecer de algo que tinha visto. Deixou com que todo seu corpo escorregasse lentamente para dentro da água fumegante. Relaxado, prendeu a respiração e imergiu a cabeça. Quando o ar já lhe faltava retornou ao mundo e mal percebeu que a espuma que tomava conta da banheira também escorria por todo piso do cômodo. Após alguns minutos saiu e alcançou o roupão. Que privilégio era poder tomar um banho daquele. Saindo do banheiro e de volta ao quarto viu pela janela que mais um dia estava para nascer, então se dirigiu ao deck para apreciar tal espetáculo. Ali, jogado de maneira desleixada numa poltrona pensou que talvez ser humano nenhum fosse capaz de produzir arte tamanha para ser comparada a belos nasceres ou pores-do-sol. Ficou imóvel, e incomunicável enquanto apreciava com admiração o alegre espetáculo do sol por poder brilhar mais um dia. Após a aurora cochilou por mais algumas horas.

Despertou mais calmo e comeu algumas frutas com iogurte. Havia se decidido a cuidar da sua saúde. Mas, como em mar aberto, a calmaria não tardou muito a passar. Aquela parte presente em todos nós que é ressaltada mais em alguns indivíduos e menos em outros, a da contestação ao estabelecido, clamava dentro dele. Seu lado selvagem uivava. Sentou-se para pensar. Ao invés de ingressar no altar de Deus preferia buscar suas próprias respostas concretas. Mas o que se podia fazer com o essencial que não é visível aos olhos? Ouvindo o suave cair das gotas da chuva nas folhas próximas a janela ao seu lado e pela a qual entrava um vento húmido e prazeroso durante aquela quente manhã de verão imaginou que talvez não fosse realmente feliz, se arrependia de muita coisa a ponto de não querer repeti-las novamente. Pois acreditava que, como havia dito o poeta, a vida é o que fazemos dela e o que vemos não é o que vemos, senão o que somos. Mas essas águas de março prometiam algo a seu coração. Lembrar-se da existência de poesia lhe causou tamanho prazer que pensou automaticamente naquela apresentação magnífica, a performance daquele violoncelista, e o prazer se disseminava por seu corpo na medida em que sua memória recriava o concerto. Seus pensamentos fervilhavam em sua cabeça, mas não a ponto de fazê-lo esquecer que a alienação consumista e a solidão humana eram para ele algo intrinsecamente dependente da organização social. Acreditava que o livre arbítrio poderia ser conciliado ao coletivo, através da capacidade humana de discernimento e de bom senso. Era muito importante para ele teimar em não rejeitar o bom selvagem. Era como se algo tivesse para se tornar explícito a sua consciência. Lembrou-se de sua última aula ministrada na universidade em que havia discutido o Mito da Caverna com seus alunos. A sensação era como se soubesse exatamente o que fosse a luz, pois havia passado tempos de militância na escuridão.

Em seu turbilhão de pensamentos era como se a caixa que Pandora recebera de Zeus tivesse sido aberta há pouco tempo, e que vivemos todos os infortúnios em uma espera pacata pelo que há em seu fundo. Seu coração palpitava sem limites, e se perguntava o que o fazia bem. Sabia apenas que nada disso era original, e isso lhe fazia um imenso mal. Perguntava-se se a tendência ao comodismo seria um Brutus dentro de todos nós, e fez mais uma refeição. Ficou um bom tempo andando de um lado para outro sem objetivo, e ao olhar pela janela a chuva que caía do alto sobre a cidade sentiu a estranha sensação de poder interpretar uma incógnita que lhe atormentava freqüentemente. Tinha um sublime prazer com a degradação humana. Odiava-se de certa forma por isso, mas estava cansado da luta. Message to Love: Raise your hand to Love somebody. Olhar pela janela uma mera chuva que cai e é capaz de alterar tanta coisa na vida das pessoas fazia de certa forma com que seu lado cínico se deleitasse. Ah! O céu! Já havia perdido sua religião, até não sabia mais o rumo de sua ideologia, não podia, portanto se desapegar da fé, a fé nas pessoas. Sabia inconscientemente o quanto essa luta era fundamental. Só queria acreditar em uma forma de recoletivizar o ser humano, e que o fato de existir não seja tudo o que faça. Isso lhe havia consumido de tal forma que já era tarde da noite, e adormeceu ali mesmo, no deck. Acordou apenas com o sol, obrigando seus olhos a contemplar o novo dia. Com os olhos ainda meio fechados relutou, mas acabou por se levantar e ficar mais uma vez estendido ali. Percebeu que o sol, após seus raios terem aquecido o conhecido e até o desconhecido, já não era mais o mesmo da aurora anterior. Ele é que ficara ali, parado, imutável, estático.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Ironia da Passividade

Acredito ser muito interessante se analisado de um ponto de vista social a forma correta de se cozinhar uma rã buscando manter a textura suave de sua carne e seu sabor. Pessoas do ramo podem facilmente confirmar a semelhança de tais animais quando confinados a um rebanho bovino: pacatos, alienados e seguindo os rumos que lhes são determinados quase que sem contestação. No momento de se fazer o cozimento da rã, nunca se deve jogá-la diretamente em água fervente, pois isto faria com que a carne enrijecesse consideravelmente devido à tensão do animal e que este pudesse eliminar dejetos na panela de cozimento o que não seria agradável ao paladar do consumidor final. Portanto, a forma mais indicada pelos melhores cozinheiros (uma vez que não é aconselhável matar o animal de forma rudimentar antes do cozimento pelos mesmos motivos) é de colocá-la em um recipiente com água em temperatura ambiente. Em seguida ligue o fogão em fogo baixo e espere alguns instantes. Com a água já mais morna o animal se acostumará mais facilmente ao seu novo habitat, e relaxado, provavelmente irá se questionar sobre os motivos que regem freneticamente a vida das pessoas os quais são baseados na individualidade e no capital. Para aqueles que não apreciam o paladar natural da carne de rã é aconselhável que adicionem um pouco de condimento a gosto nessa fase do processo; sendo aconselhável a adição de páprica, mostarda ou pimenta do reino em pó. Relaxado e pouco preocupado, o animal da classe Amphibia mal se dará conta da elevação considerável na temperatura da água e terá seu fim como ser vivo em água fervente da mesma forma; mas será degustado por outro ser vivo de uma forma muito mais prazerosa. Assim a rã abdica de seu livre arbítrio a fins de degustação e tem uma morte um pouco mais humanitária. Pode ser servida com inúmeros acompanhamentos dependendo da estação. Seguindo esta forma de preparo a carne será inevitavelmente tenra, saborosa e terá ótimo aspecto visual. O cozido combina perfeitamente para ser apreciado com um bom vinho branco.