segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Apenas mais um fora-da-lei

O garoto, com os vívidos olhos atentos, se encurvava cada vez mais em direção ao avô. Nada, além do enorme respeito e de uma profunda curiosidade poderiam domar aquela geniosidade juvenil para que ficasse calado, entretido, a todo ouvido. O avô sabia disso, e como a compania lhe era agradável continuou a história: Ele mal sabia que aquele último apito nunca iria lhe sair da cabeça. Respirou fundo buscando controlar seus nervos, e pulou da ponte sobre um dos vagões. E como era habitual foi saltando de vagão em vagão até chegar a locomotiva a vapor. O longo e demorado apito já fazia com que mais fumaça dançasse entre o céu e a terra quando rendeu o maquinista com sua velha companheira calibre 22. E logo depois da estação daquela pacata cidade perdida no meio do nada, fez com que parasse o trem. Antes de sua parada completa, outros homens que se aproximavam do trilho subiram em alguns vagões. Saíram com muitas malas de couro, carregaram-nas sobre os cavalos amarrados próximos dali, e desapareceram mais rápido do que haviam se aproximado. Após a divisão não muito amistosa em um celeiro abandonado não muito longe dali, reafirmou que este era seu último assalto. Seus comparsas insistiram, mas não muito, pois o respeitavam e não queriam contrariá-lo. Sabiam ser impossível sem ele. E assim partiu, já era hora de voltar a sua casa.

No cais de Liverpool, onde comprara uma viagem até a Irlanda, notou uma movimentação estranha. Em seguida tiros. Quem era vô, a polícia? Os bandidos? Ele escapou? Ele afirmou nuca saber de onde vieram os tiros, mas astuto que era conseguiu despistar seus perseguidores facilmente. Porém na pressa da fuga só percebeu que estava no navio errado quando se acalmara com a visão esplêndida do alto mar. Descobriu que estava vindo pra cá, o Brasil. Sério vô? Claro, e como você pensa que o conheci! Eram meses de viagem naquela época. Conheceu dois estudantes aristocratas daqui que cursavam medicina e direito na Inglaterra. Aprendeu algumas palavras de português com eles durante o trajeto, entre um jogo de cartas e algumas cervejas, e acabou os cativando com seu jeito de ser. Era realmente um sujeito intrigante. Compartilharam histórias e confissões, e os garotos ficaram surpresos com as inúmeras aventuras daquele rapaz apenas um pouco mais velho que eles. Mas quando lhe foi perguntado afirmou: Claro que tenho medo! É normal, é isso que me manteve vivo; por sei lá que raio de motivo. Os confessou que havia decidido parar, pois, da última vez o apito havia soado antes de dominar o maquinista, algo que nunca acontecera antes. Passou a temer o medo. O mar assim como a jornada parecia infindável. E depois de muito tempo esse peregrino, assim como muitos, adoeceu no navio. Por incrível que pareça, era normal isso, contrair alguma doença nessas viagens pestilentas.

Ficou tão combalido que delirava e nem percebeu que chegaram ao Rio de Janeiro. Após longos meses de viagem, seus novos amigos se comoveram, afinal ela não tinha para onde ir, e decidiram levá-lo consigo. Foram todos conduzidos até a sede da fazenda da família e o médico logo fora acionado. O pai a princípio ficou meio receoso com a atitude dos filhos, mas decidiu esperar que o pobre diabo se recuperasse. Com sua eminente recuperação, a pedido dos estudantes, quase que diariamente após o jantar o novo visitante passou a contar suas histórias, em terceira pessoa para não assustar ninguém, e ganhou ainda mais admiradores. Pode perceber que grandes olhos castanhos o observavam com ternura e atenção, noite após noite. Aqueles olhos o fascinavam, e pareciam ser capazes de ler sua alma. Mesmo com o receio do pai acalmado parcialmente pela mãe, pela filha e pelo padre do vilarejo que ali se reunia algumas vezes, este permaneceu e ganhou um emprego de capitão do mato. Aquele lobo selvagem só aceitou tal proposta porque aqueles olhos o obrigavam a ficar ali. Entendiam-se com olhares; não apenas devido a uma comunicação problemática de um português ruim e um inglês não muito melhor, mas a sintonia entre ambos. E com a reciprocidade dos olhares e com a convivência, não podia mais mal tratar aqueles seres que nunca havia visto antes. Ela era estudada, tinha olhar crítico e alma indomável. Amaram-se ardentemente, e com o posicionamento ferrenho do pai, se viram como animais acuados, enjaulados. Não pensaram duas vezes, e não antes de libertar aquelas outras almas enjauladas, o anseio por liberdade e a ardência do sentimento os fizeram ser vistos pela última vez naquele mesmo porto do Rio de Janeiro, do qual ele mal se lembrava.

Como rapaz, a moral da historia? Ah, é que não precisa ter necessariamente uma moral. Viveu buscando não se arrepender, sem tirar o brilho do olhar para o que acreditava, amou como nunca imaginara e morreu com naturalidade, como qualquer outro deveria fazer.

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