segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Flores do Acaso

Ele olhou para o lado, levou suas mãos a sua enorme calça xadrez, vestiu-a. Em seguida seus suspensórios, depois alcançou seus grandes sapatos, a peruca calva e colorida, e por último colocou seu nariz vermelho. Indo ao banheiro foi desolado por uma visão: contas acumuladas sobre uma pequena mesa. Continuou seu caminho como se estas fossem imperceptíveis, odiava ser dragado pela realidade. Passou o pó em seu rosto caprichosamente de forma a tentar disfarçar sua pequena e suave cicatriz no supercílio, pegou o enorme arranjo de flores e partiu. Havia comprado mais flores que o habitual, estava vendendo bem e sentia que hoje seria um bom dia. Ele tentava se convencer de que realmente não queria ter as mãos sujas. Seguindo com passos tranqüilos, porém obstinados, ele assobiava durante o caminho, e tudo lhe parecia poesia. Caminhava leve como uma pluma e saltitava com um sorriso irremovível de seu semblante. Observava atentamente o movimento das folhas das árvores que pareciam contentes com o soprar do vento e o suave raiar do sol da manhã, assim como notava as diversas expressões no rosto das pessoas que se cruzavam freneticamente pelas calçadas e seguiam rapidamente a se perder de vista.

Abordava sempre os casais, eram presas fáceis. Mas antes apreciava de forma desolada as ações dos amantes naquele parque. Ele se fazia de sombra, dançava, se expunha teatralizando seus gestos, fazia malabarismos, quando ignorado os ridicularizava; era como se ali fizesse algo de importante e original. Em geral as pessoas riam e se alegravam com ele. Aquele som do contentamento desconhecido penetrava seus sentidos de forma atordoante e parecia lhe conferir algum propósito. Era bom naquilo. Antes do cair da tarde entediou-se e resolveu descansar. Removeu parcialmente a maquiagem de modo grosseiro com um trapo e água do chafariz do parque, guardou seu nariz vermelho e a peruca. Decidiu parar por ali e sentar-se para continuar a ler seu romance. Adorava isso, podia sentir o mundo de outra forma, algo além do que sua sensibilidade podia captar, seus olhos enxergavam ali o que no mundo real podiam apenas ver. Era como se colocasse óculos e passasse a enxergar naquele momento a simples verdade. Seu coração batia, seu sangue fervilhava sem amargor enquanto lia. A tarde foi caindo sem que percebesse e pensou que estava cansado de mais para se concentrar naquela aula, queria aprender da vida, vivendo. Quando a iluminação natural foi se tornando mais escassa e já não podia mais ler com clareza fechou o livro com pesar e decidiu aguardar mais uns instantes para contemplar o sol que estava por se pôr. Blasfemou contra a luz que se deixava morrer, mas contentou-se com o esplendor escarlate de sua morte. As cores faziam um espetáculo à parte no céu.

Sentado, com o dia se esvaindo perante seus olhos pensou na vida longe dali que um dia o havia pertencido e em seus sonhos outrora sonhados. Apercebeu-se de que há tempos não sonhava mais. A tranqüilidade de um outono adormecendo o dominava. A fuligem e secura do ar contribuíam para um pôr-do-sol esteticamente esplêndido, magnânimo. O que o consolava ainda mais era o fato de que o sol brilhava dia após dia em todos os poucos lugares que havia conhecido, e isso fazia com que não se sentisse o único. Incomodava-lhe de certa forma o fato de se adequar pacatamente a solidão. O tom avermelhado tomou conta do horizonte de uma forma impiedosa, até que a escuridão o consumisse aos poucos, e ele partiu. Caminhava leve, chutando as folhas secas caídas no caminho e se equilibrando alegremente sobre a tênue guia com os braços abertos; o caminho era longo. Observava o panorama, gostava de ver a frieza das anônimas luzes da cidade. Quando, tarde da noite, um inesperado estrondo rompe com o silêncio sublime da escuridão. No momento em que o rapaz percebe uma agitação anormal em frente a uma agencia bancária, seguidos pelos estrondos, pequenos projéteis de metal se deslocam vencendo a resistência do ar rapidamente. No momento em que, por motivo indeterminado, a trajetória deles, do metal e da carne, se cruzam. Dois corpos ocupavam ali o mesmo lugar no mesmo espaço de tempo. Ele cai vagarosamente sobre a guia da calçada. Seus braços são vencidos também pela força da gravidade e encontram o suporte frio do chão, então uma de suas mãos deixa escapar as flores que não havia vendido. Seu corpo fica ali ignorado, estático, entre a rua e a calçada, estendido atônito e com os olhos abertos.

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