segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Vida

Admirava as belas manhãs como aquela, com o dia ainda nascendo e as luzes que faziam com que tudo, do horizonte aos seus pés, tenha mais brilho. Era isso, o brilho. Caminhava em seu trajeto habitual, com sua vestimenta habitual e um bom-humor não muito usual. Amava seu trabalho apesar de tudo. Parou por alguns segundos e deu atenção aos pássaros, achou aquela melodia linda. Apesar desta não conseguir afastar seus pensamentos das canções de choros entristecidos. Olhou para o céu azul e sorriu. Entrou no hospital e aquele choro emudecido com uma nostálgica e melancólica mensagem se perpetuava sobre seu sentido. Acabou de colocar o restante apropriado de sua vestimenta que se fazia ali tão necessária. Poucos passos naquele gélido e longo corredor foram necessários para que o encontrasse. Perguntou ao Oncologista qual era o estado daquele “estômago” do quarto 146, e seu olhar lhe respondera com uma tristeza quase encoberta por ceticismo. Ele é uma pessoa doce, disse, vou subindo na frente e te encontro lá então. Desapareceu pelo labirinto. Lembrou-se de quando presenciou seu primeiro óbito, e no que o medico lhe dissera: Essa burocracia pode parecer assim meio desumana, mas é assim que as coisas funcionam; agente se acostuma a tudo.

Pediu permissão e entrou. Aquele pobre diabo já tinha um aspecto cadavérico, estava amarelado e definhava já havia muito tempo. Sua respiração fazia um barulho grotesco que de certa forma incomodaria pessoas não acostumadas a isso. Tinha um olhar triste e opaco. Ela ajustou a cama, passou-lhe um pano sobre a testa suada e verificou a dose do soro. Está suado, andou tendo sonhos ruins, perguntou-lhe. Com uma voz rouca, após relutar um pouco ele diz: São esses espectros. Tudo bem, sempre fui perturbado assim, não se preocupe. Revidou: Não senhor, estou aqui pra isso. Preocupar-me é minha função e me orgulho muito dela. Ele disse: Eu acho que nunca vou conseguir me entender e ficar em paz comigo mesmo. Vou morrer sem ver nada de novo. Ela se aproximou do leito, passou lhe a mão nos cabelos ralos e brancos e tentou intervir: Não, não é assim. Você, você... Detestava esses momentos, não tinha sido treinada para isso. Ele tossiu um pouco e continuou: E se não consigo encontrar paz em mim mesmo, como acho que muitos também não consigam, como ainda posso sonhar com a paz da coletividade em larga escala? E sem sonhos, o que nos resta? Carne? Acalme-se e descanse, ela retrucou, vou apressar o doutor. Saindo do quarto, antes que pudesse fechar a porta, os aparelhos começam a apitar intensamente.

Após o fim do expediente e de volta a sua casa, ouviu o choro da criança antes de girar a chave. Correu ao seu encontro e amamentou-o carinhosamente. Seus olhos eram vivos, brilhantes e observavam tudo ao redor. Colocou-o no berço e foi ver como estava sua mãe. Na claridade artificial do cômodo mal havia notado que o brilho da tarde se esvaíra e que uma bruma cinzenta tomara o céu por completo. Dispersou a atenção ao olhar fixamente pela janela e viu as mesmas antenas, prédios e torres que não deixavam que restasse muito do céu a observar e que continuavam a piscar como sempre. Na verdade achou o brilho mais intenso, devia ser o contraste com aquele fundo sombrio que o céu formava. Perdeu-se nessa visão descomunal e estranhamente reconfortante, sem se incomodar com seu caráter assustador. Pareceu-lhe ser algo novo, nunca havia testemunhado coisa parecida, dificilmente saia da rotina. Isto lhe causou certa paúra. Quando se voltou, viu a mãe recostada na poltrona onde costumava ler. Ela já não respirava mais.

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